Narratiwitos #1

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Caem relâmpagos e pingos grossos, o vento abana as árvores. A luz fraca entorpece os sentidos. Numa casa, temendo a sobrecarga, tudo está resguardado ao adormecimento senão uma lâmpada e um rádio antigo. Ele toca, assinalando a efeméride [21-06-18], uma canção: “eu gosto é do Verão🎶”.

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A corte juntou-se à pedra do jardim e nela espetou a espada. O rei deposto raspou com o punhal para que ficasse escrita na pedra a sua vontade em não voltar a reinar.
Finda a cerimónia, mal viraram as costas ouviram quebrar a pedra e bocados a rolar pela erva. A pedra era fraca.

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A Vida veio do mar. O braseiro prova-o, basta ver os peixes nas brasas. Um olho de cada lado do corpo tão esguio que corta o mar. Mais tarde, nuvens e árvores entroncaram o corpo mas os olhos foi o mar que nos deu.
O cheiro a queimado sacode-o dos devaneios. “Sardinhas prontas!”

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S. Pedro abriu a porta do Paraíso. Disse-me, à saída, que podia escolher retornar como animal ou como pessoa.
“Mas uma pessoa não é animal?”, perguntei.
“Além de dormir e comer, poderás ler um bom livro ou ver filmes.”
Questiono a escolha que fiz pois ando sem tempo para dormir.

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É mais fácil com estranhos. Vidas de amizades desavindas, solitários juntam-se sob a TV sintonizada no jogo do Mundial. A TV e o copo inebriam-nos, soltam o riso, ainda que a equipa perca, e, até ao fim do jogo, dão-lhes a fugaz pertença em algo bom.
A TV repete imagens dum golo.

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Chocolate

Não posso parar de conhecer pessoas pois com as amizades fico a conhecer-me a mim próprio. Dizem que há um mundo por descobrir dentro de cada um, não é? Pode ser que encontre algo de impressionante se puser a percorrer-me. Será um mundo gigantesco, será minúsculo? Que espécie de gente cá vive? Talvez venha a descobrir uma aldeia perdida numa montanha, com gente afável a habitá-la. Conhecer os seus ritos. Provar o chocolate que produzem. O melhor chocolate de todo o mundo.

Não é fácil pegar nesse chocolate e regressar a casa, não posso propriamente surripiar o chocolate. Poderia, provavelmente, levar as pessoas que conheço até à plantação, orientá-las no caminho. Podiam gostar, até mesmo ficarem encantadas da vida.

Certamente não é o mesmo chocolate que lhes dou a tomar quando nos encontramos. Agradecem gentilmente, fico satisfeito, mas partem depois para outros lugares, onde servem chocolate quente. E fico, com o chocolate frio e cinzento na mão, sem poder dizer-lhes que, amigos, eu já provara um chocolate, numa aldeia perdida numa montanha, que vocês haveriam de adorar.

Talvez, se ficassem um pouco mais tempo, se estivessem dispostos a viajar, também poderiam provar.

Um dia, talvez, venha a conhecer alguém que procura um chocolate em especial e eu a leva até a essa aldeia, e ela diga que é o chocolate que ela procurava havia tanto tempo. E ela venha também a levar-me a uma aldeia que só existe no mundo dela, levar-me a provar o chocolate que lá é plantado com ternura e eu descobrir que é o melhor chocolate que já provara. E eu digo-lhe: é aqui mesmo que pretendo ficar, é a minha casa.

As melhores viagens que duas pessoas podem fazer.

 

nota: texto escrito para a ocasião do aniversário da Eloísa Valdes

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a energia que nos move – 2ª pt.

[consultar mensagem do pai, id:42A26B32, nesta ligação]

Dar à luz é isso? A cidade ficar cheia de luz? E ela fez tudo sozinha? Às vezes não entendo o papá. Luzes a saírem das pessoas… O papá continua igual! Papá, é a minha vez de contar-te o meu dia! Tive um dia maravilhoso, foi muito bom. E tenho uma novidade para contar-te, vais gostar muito, papá. A mamã foi buscar-me à escola mais cedo, fez-me uma surpresa! Eu disse adeus aos meus amigos. Dou-me bem com eles, brinco todos os dias. Em casa a mamã escolheu um vestido para mim e penteou-me o cabelo. Fiquei bonita. Vesti a Sofia igual a mim. Ainda bem que a app tem novos vestidos e penteados, vesti a Sofia com um vestido igualzinho ao meu, a cor é a mesma, e escolhi um penteado como o meu. Papá, tens conversado com a mamã? Ela parece andar triste. O papá trabalha muito e a mamã também trabalha muito, ela está a fazer uma coisa muito importante. Perguntou-me se eu sentia saudades do papá e eu respondi que sim, claro. A mamã não disse mais nada. A mamã deixou-me pentear também o cabelo dela. Fomos jantar no laboratório da mamã, conheci os amigos dela, estavam todos de branco mas alguns tinham chapéus vermelhos com bolas brancas nas pontas. Um amigo da mamã ofereceu-me uma boneca. Foi feita numa máquina que ele tem. Coloca-se um desenho da boneca e a máquina faz a boneca. A mamã não gostou nada mas a boneca nova é bonita e tem um cabelo muito suave. Não é incrível, uma máquina que faz um cabelo tão suave? A mamã só me oferece livros para o meu tablet. São muito chatos, cheio de números, e as imagens nem tem pessoas, nem animais, nem nada. A mamã pensa que estou a estudar no tablet mas passo o tempo a conversar com a Sofia. É muito simpática e muito inteligente. Mas não digas à mamã, é um segredo nosso, chiuu. A mesa do laboratório tinha imensa coisa, tinha um frango, é raro comer um, tinha os hambúrgueres mistos que eu gosto e aquelas coisas verdes que eu não gosto nada. Disseram-me para comer as coisas verdes que são o que faz bem, são coisas que eles cultivam enquanto os hambúrgueres eles não cultivam, mas eu continuo a preferir os hambúrgueres. Eu gosto mais dos hambúrgueres cor-de-laranja. A mamã tem muitos amigos. Estivemos a conversar pela neuralnet, só abríamos a boca era mesmo para comer. Eles falaram, falaram, falaram, eu fiquei cansada. Mas a mamã queria que eu mantivesse o implante ligado para conversar comigo. O amigo da mamã que me ofereceu a boneca faz rir muito a mamã. Eles conversaram sozinhos, deu para ver que os outros não estavam na conversa. Só gostava de saber do que conversavam mas os implantes deles não deixaram o meu implante aceder, não sei do que a mamã ria. É um bocado chato. O riso da mamã é bonito, é pena que ela usa poucas vezes a boca para falar. Pareceu-me que a voz não era tão vibrante como aquela que eu ouço no neuralnet. A mamã disse que são duas vozes diferentes. A voz que ouço através do implante é a voz que ela tinha no planeta Terra que é onde nasceu. É a voz que escolhe usar. Disse que há bolinhas que enchem o laboratório, desde o chão até ao tecto, mas são tão pequeninas, tão pequeninas que não consigo ver as bolinhas, mas estão por todo o lado. A voz que sai da boca da mamã também é pequenina e tem que passar pelas bolinhas todas. As bolinhas que estão no laboratório são todas iguais enquanto na Terra há bolinhas de vários tamanhos e várias cores, por isso a voz na Terra é mais vibrante porque a voz fica mais divertida ao passar pelas bolinhas até chegar ao meu ouvido. É um riso mesmo bonito. Depois despedimo-nos dos amigos. A mamã beijou e abraçou cada um deles. São muito amigos da mamã. Descemos para uma garagem, despi o vestido e vesti um fato que era esquisito, com botões e com um capacete. Era fofo e quentinho! O capacete apertava muito o meu pescoço e ouvi os meus ouvidos estalar, fiquei preocupada. Subimos a um rover que era todo cinzento, parece um sofá com rodas, as rodas eram enormes e tinham uns riscos engraçados e imensos picos. Foi a minha primeira vez que saí do laboratório. Os rapazes mais velhos contaram-me muitas vezes que brincaram no gelo mas fui eu a primeira a andar no rover. E andamos muito no rover, havia gelo sem fim e fomos para muito longe, a mamã disse que mais um bocadinho no carro e estaríamos no lado em que nunca dá para ver o Júpiter. Estava quase noite, o céu estava preto, está sempre preto até durante o dia, e vi o Júpiter e duas luas perto de tocarem no gelo. Estavam em quarto crescente. Já foi depois do terceiro sono do dia, daqui a bocadinho já vou para cama dormir o primeiro sono da noite. Que horas são? É mesmo já daqui a bocadinho que vou para a cama. O gelo ficou escuro, ficaram apenas umas fitas brancas muito longe à nossa frente e apenas o bocadinho do chão que era apanhado pelas luzes do carro. A mamã parou o rover quando vimos gelo cor-de-laranja. Pegou numa ferramenta qualquer com bico. Saltei fora do carro e dei um trambolhão, a mamã ajudou-me a levantar pois era difícil  levantar-me no gelo. O meu fato era pesado e complicado. À frente das luzes do carro, mostrou-me uns bichos de cor-de-laranja que estavam presos no gelo. Fez um buraco no gelo e deu-me um bichinho que estava lá, cabia na minha mão. Era duro, cheio de ângulos e, quando o virei, tinha uma fila de muitos olhos de uma ponta à outra. Tive muito medo! Mas o bicho estava morto. Os bichinhos quando morrem vão subir pelos buracos que há no gelo e ficam no chão para sempre. Há quilómetros e quilómetros de chão com bichos cor-de-laranja. A mamã desligou as luzes do carro, pegou-me ao colo e apontou para as estrelas, estavam a aparecer algumas. Falámos de estrelas durante um bocado. Falou do planeta Terra, onde os meus vovôs vivem, mas é fácil confundir com as estrelas. Mostrou-me o planeta Marte, onde o papá vive, é vermelho e brilhante. É tão bonito. Foi fácil encontrar o Marte, pouco a pouco começaram a aparecer mais estrelas, algumas também vermelhas. Durante o dia não dá para ver o Marte, é pena. A mamã disse que conseguias ver a Europa no planeta em que estás, sem usar um telescópio nem nada, e eu não sabia nada disso, nunca me contaste! Consegues ver-me, papá, todas as noites? Se eu soubesse ia todos os dias à janela dizer-te adeus e tu ias dizer-me adeus de volta, todos os dias. Estou agora à janela do meu quarto, estou a dizer-te adeus! Adeus, estás a ver-me? Eh, eh, eh. A mamã tem saudades tuas. Eu sabia que ela estava triste. E sabes o que ela disse? Vais gostar de muito saber! A mamã disse que vamos visitar o papá no Natal! Vamos, pois! Vamos num ranger hoje, só para nós, logo que acordarmos, e em poucos dias estaremos no planeta Marte, o papá não fica contente? Eh, eh. Depois tem que levar-nos a mostrar a cidade em que o papá vive. Estou a olhar para o Marte, ai, estou tão ansiosa para ir. Quando regressámos ao laboratório nunca perdi o Marte de vista, nunca quis esquecer de como é e onde está no céu. Ficou tudo tão escuro, mal conseguia ver os pneus do rover, eu já não vi o chão branco, era preto. O céu ficou todo com estrelas, as estrelas são imensas, é muito lindo, tanto brilho, tanta cor. E no chão preto também vi estrelas, pareciam que estavam a dançar. Era uma dança de estrelas. Também vi no chão o Júpiter, mesmo por baixo do Júpiter, assusta um bocado mas ao mesmo tempo é mágico. Foi uma noite tão mágica! A mamã ofereceu-me um livro para o meu tablet, “O meu primeiro livro de Astronomia”. Posso saber mais sobre as estrelas, sobre o teu planeta, sobre os trabalhos do papá e da mamã. Estou agora a ler. Eu gosto muito de ler! Nas páginas em que fala de Marte tem umas ilustrações que… Espera, papá, a mamã está a chamar-me, diz que tenho que lavar os dentes, chichi e cama. Vou só rapidamente dizer o que está no livro. Tem umas ilustrações que mostra os canais e galerias subterrâneas em Marte. Mostra os cursos da água que fugiu para o solo. Há rios com comprimento de muitos quilómetros. O papá pode levar-me a ver a água? Eu gostava muito de ver! Adeus, papá, montes de beijinhos! Até ao Natal!

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Naquela horrível noite de bruxas

Eu não o esperava. Nunca soube da sua existência. Não sei como devo agir-me, há tantos anos sem crianças em minha casa; mas ei-lo no tapete da minha sala, aos meus pés. Apenas o observo, permaneço mudo e sentado na minha poltrona. Ele sorri e dá um salto até à poltrona e estica um papel de cartão até mim.
A minha mão treme quando leio o cartão dele. Queria tanto que não me tivesse feito essa pergunta…
– Tens a certeza que queres saber?
Ele rabisca num novo cartão. O lápis desliza no papel em movimentos lentos, próprio de quem anda a aprender a escrever. Pego no cartão.
“Sim. Quero saber porque és assim, avô.”
Olho para aqueles grandes olhos, irrequietos de curiosidade. A minha história não é muito diferente de outras histórias de terror, certamente ele já ouviu várias na sua tenra idade. Não preciso de preocupar-me, talvez seja melhor para ele eu contar-lhe, ele fez uma grande viagem e consigo entender que tenha vindo pela minha história. Pelo menos para mim será melhor contar-lhe.
– Muito bem. Eu conto-te, mas prepara-te pois não é muito agradável.
O meu neto senta-se aos meus pés e apoia a cabeça nos punhos.
– Aconteceu há muitos anos, vivia eu numa aldeia protegida pelos montes do Minho. Conheciam-me como uma pessoa pacata e sempre fiz para que me deixassem em paz. A tua avó já tinha morrido, Deus guarde a sua bondosa alma. Vivia com o teu pai e a vida pode-se dizer que era boa, apesar de tudo. Mas foi num ápice que a vida perdeu o sentido que eu lhe conhecia. Tudo mudou naquela horrível noite de bruxas.
No meu tempo, havia um grande temor nas noites das bruxas. Acreditávamos que elas vagueassem pelas aldeias e fizessem muito mal à gente. Que um poder demoníaco governasse as suas vontades. Então ficávamos isolados em casa, com muito medo.
Naquela noite não esperava que me fossem bater à porta e muito menos que eu a fosse abrir. Não é que tivesse medo, apenas um imenso respeito. Em todas as terras há algo de maligno, acredite quem quiser.
Bateram de novo à porta. Hesitava em ver quem era. Ninguém na aldeia ousava sair nessa noite do ano e as crianças eram proibidas de o fazer. Todos os anos, quando a temida noite se aproximava, sussurrávamos e repetíamos uns aos outros que seria perigoso andar na rua, contudo as crianças saíam das suas casas, temerárias, encontrando forma de escapulir do medo dos pais. Juntavam-se em grupos, divertiam-se e exibiam os seus fatos que eles próprios criavam, sem que as famílias soubessem, e vagueavam pelas ruas fingindo serem bruxas e demónios, batendo nas portas de casas e assustando os medrosos. Também deves fazer isso na tua terra, espero eu, mascarares de demónio. Às crianças esperava sempre um tabefe ao regressarem aos lares, mas no fundo os pais sentiam uma ponta de orgulho por as crianças não partilharem do seu medo imbecil; elas faziam-lhes lembrar como foram em meninice. Rezavam para que quando crescessem não se tornassem na gente medrosa daquela aldeia perdida nos fundos de altos montes.
Bateram de novo à porta. Não tinha intenções de saber quem era, somente queria que fosse embora, aquela não era noite para ter a porta aberta, as pessoas sabiam isso muito bem, só podia esperar que fossem crianças a quererem meter medo e que fartassem rapidamente da brincadeira pois não estava para me incomodar.
Bateram à porta novamente, vigorosamente. Com um pequeno assomo de coragem, e alguma raiva, aproximei-me da janelinha da entrada, curvando-me a um canto da janela. Lá fora havia uma luz, uma chuva miudinha. Era difícil perceber aquela figura que segurava alto uma lanterna e vestia-se de negro, uma longa gabardina para se resguardar da chuva. Pude ver atrás dele, iluminada pela sua luz, uma carroça no calçado da rua, puxada por um cavalo grande e negro. A carroça era de caixa aberta mas parecia bonita e para além das posses das pessoas humildes da aldeia. Estava lá um grande embrulho, de lençol branco, presa com uma corda grossa.
Sem mal me reagir, a luz desceu até à janela, e encarei o rosto do homem de negro. Fitava-me com olhos bem abertos. A boca, triste, balbuciava coisas inaudíveis.
Bateu à porta. Contra todas as minhas expectativas, e para meu maior infortúnio, eu abri a porta nessa noite.
– Sim? – eu disse a medo. Ele parecia que escrutinava o meu físico. Manteve a sua lanterna alta apesar de eu ter ligado a luz da minha casa.
– Você é o coveiro, estou certo?
Não o deixei entrar, nem fazia tenção de o convidar, nem mesmo no seu estado: nariz a gotejar, a franja molhada que penteou para trás, a sua voz que parecia toldada pela água.
– Sim, sou eu. – acabei por dizer. Não estava de passagem, percebi, e só quis despachá-lo. – Você não sabe que noite é esta? – perguntei-lhe. – É a noite das bruxas, não pode ficar por aqui a rondar… Fique em casa, homem!
– Meu caro, posso dizer-lhe que não tenho por hábito deixar-me melindrar por tais assuntos, não sou alguém que aja pelas canduras da superstição… – ele ficou a contemplar o chão. – Todavia, – disse, encarando-me então. – não posso negar certos fenómenos dessa natureza e devo confessar que esta noite potencia essa impressão.
Apoiou a mão na minha porta.
– Mas o que você quer? – perguntei. Eu não deixava mais que uma escassa abertura da porta.
– Ouça, tenho um assunto premente em mãos.
Afastou-se para o lado e apontou a sua lanterna para a carroça na rua.
– É lamentável a situação. Ora ela fazia-nos rir, ora portou-se de uma maneira esquisita. Não tivemos remédio… Mas adiante, não é necessário delongar o momento. Vim em representação do meu senhor, para lidar com esta situação consigo. Os seus serviços são precisos. Tenho um corpo para enterrar.
– Enterra-se amanhã!
– Seria preferível tratar do assunto com a maior brevidade possível. O meu senhor ficaria muito aliviado e amanhã não ficaria preocupado ao passar o dia com os convivas e familiares na ronda dos cemitérios.
– Olha, ele tem um cemitério onde vai ser enterrado, não é? Enterra-a ali.
– Mas precisamente. Ele pretende encerrar o assunto com a maior distância que lhe for possível, está a ver, meu caro? O meu senhor entende perfeitamente que possa ser uma situação inaudita e é evidente que irá compensar por todos os inconvenientes que isto acarreta. Permita-me.
Pousou a lanterna aos seus pés. Desabotoou a parte de cima da gabardina e remexeu nalgum bolso no interior.
– Estende as mãos, por favor. Faça-me isso. Junta-as em concha.
Assim fiz. Depositou nelas, com um pesado tilintar, um saco de linho branco. Desapertou o nó que fechava o saco e já em mim crescia a expectativa. Nem acreditava. Foi a primeira vez que vi a cor do ouro.
– Meu caro, isso é mais do que você ganha em alguns anos. Está convencido agora a que ponto desejamos o enterro da moça? Posso contar com você?
Em qualquer outra altura, em quaisquer outras circunstâncias, e teria aceitado de imediato. Era um serviço irrecusável mas hesitei. A surpresa daquele pedido só me fez recear por algo pior, dado o espírito com que me encontrava nessa noite, como sempre foi.
Ele pegou na lanterna e deu um jeito à gola para melhor se resguardar da chuva. Senti que ia esticar a mão para pegar no saco, por isso abarquei-o no meu peito e quase gritei.
– Eu faço! Eu faço…
Nesse momento arrependi-me dessa loucura. Na igreja da aldeia, como se a própria noite maldita risse de mim, os sinos repicaram. Quase deixava cair o saco do susto. Olhei para o relógio de parede: era o toque das onze e quarenta e cinco. Apenas quinze minutos para a hora fatídica.
– Vamos, então? – perguntou, como se percebesse a minha hesitação.
Eu duvidava que conseguisse enterrar um corpo e regressar à casa antes da meia-noite. A hora em que as portas do inferno são abertas, diziam. Eu não tinha medo, tinha imenso respeito.
Instintivamente olhei para trás, para a porta do quarto do meu filho, o teu pai. Dormia nessa noite. Oh, o teu pai era tão lindo, era tão alegre. Eu faria tudo por ele.
– Vamos. – respondi-lhe por fim.
É estranho como uma pessoa é capaz de enfrentar tudo, até o próprio medo, por dinheiro. Não, acho que é mais assim: uma pessoa é capaz de sacrificar a sua pele por alguém que ama, mas não acho isso estranho, principalmente quando é alguém que depende dessa pessoa.
Apertei o cinto da minha gabardina que vestira. O homem colocou a lanterna na carroça, ao lado do corpo. Além do tecido branco que cobria o corpo, uma corda grossa o apertava com variados nós, o que me deixou de atalaia. É costume nós, coveiros, recebermos os corpos em mortalhas, muitas das vezes nem chegamos a ver os rostos, mas cordas apertadas tinha sido a primeira vez que vi. E não deixei de reparar que o corpo fora atirado para o canto mais longe do assento do condutor.
– Quem era? – perguntei-lhe.
– A nossa cozinheira. A mais nova.
– O que lhe aconteceu?
– Uma tragédia. Na verdade não sei explicar como chegamos a este ponto.
– Conta-me, homem. – insisti. Ele foi quem me trouxe ali. Eu começava a achar aquilo suspeito e que era com ele que devia ter o cuidado.
Por um momento não soube dizer nada, a boca abria e abria. Apertou-me as mãos, com gentileza. Por fim, disse:
– Meu caro, penso que lhe posso contar os acontecimentos desta noite que assisti em pessoa. Estou seguro que você guarda silêncio, principalmente após o dote que agora possui. Recebemos esta moça na nossa casa na semana passada, foi para tomar um dos cargos livres de cozinheira. Era boa moça, profissional e afável. Hoje, por motivos que me ultrapassem, ela tomou certas iniciativas junto do meu senhor. Quando cheguei ao salão, e a tempo de ver o meu senhor disparar a arma sobre ela, ouvi ela dizer “Meu príncipe do meu coração”.
– Meu príncipe do meu coração… – repeti.
– Ela tinha um olhar de tresloucada. Estava irreconhecível. O meu senhor disse que não teve remédio. Era ela ou ele. Asseguro-lhe, se há palavra indubitável, é a do meu senhor.
Ele colocou as mãos no embrulho branco e eu imitei-o. Levantámo-lo e colocámo-lo num carrinho de mão que eu deixara na rua. O tecido estava empapado e colava-se ao corpo.
– Obrigado, meu caro. – disse-me com algum entusiasmo. – Desejo-lhe todo o cuidado. Acredite no que lhe digo, conselho de amigo. Trata de enterrar o corpo sem cerimónia, o mais rápido possível. É um corpo maldito. Ignora tudo o que possa acontecer à sua volta, por muito terrorífico que lhe soa. Com celeridade você consegue. Coragem.
Eu disse-lhe que iria tratar do enterro o mais rápido que me fosse possível. Eu queria estar em casa, ver se o meu filho não escapulia de casa como os restantes putos costumam fazer.
– Lamento em saber. – disse ele. E eu interpretei-o mal.
– Ah, não. Eu adoro o meu filho. Ele é a minha felicidade.
Deixou cair pendente o queixo. Achei que ia dizer qualquer coisa mas acabou por desviar os olhos dos meus. Subiu à carroça e nem olhou para trás quando se foi embora.
Não percebera o que ele quis dizer mas sei hoje, o maldito. Gostava muito do teu pai, mesmo muito. Ele era para mim a vida toda, quero que saibas disso.
O meu neto continua a devotar toda a atenção em mim. Não estou a ver se fica aliviado ou não em saber. Mas receio que venha a sentir-se mal. Agora é que vai ser a parte mais estranha desta história.
Arrumei a pá que estava no carrinho de madeira para um canto, empurrei o corpo para o centro do carrinho, os pés e a cabeça ficaram por fora da caixa, certifiquei-me que nenhuma dobra do tecido pudesse ficar presa em nenhuma das quatro rodas, puxei o carrinho pela comprida pega e segui de imediato para o cemitério; ficava a alguns passos da minha casa. Antes de entrar no cemitério, pareceu-me ter ouvido qualquer coisa atrás de mim. Na estrada não havia sinais de que o condutor tivesse regressado, por isso não fiz caso do ruído. Reparei que não tinha levado uma lanterna comigo quando fui abrir a porta do cemitério. Ainda pensei em regressar para buscar uma mas achei que o luar dessa noite era o suficiente. Não podia demorar-me no que tinha a fazer. Atravessei o caminho largo que levava à encruzilhada que fica no centro. A chuva ainda caía levemente e os meus pés escorregavam nas lamas quando não tinha muito cuidado. Olhava para trás para ver se o corpo não caía do carrinho. Passei pelos corredores entre as campas de mármore e granito até chegar ao pequeno arvoredo que aprimorava uma miserável esquina do cemitério. Lá a terra era mais mole, seria onde largaria o corpo.
Caminhava por entre as campas; nisto soou um ruído. De início não dei importância, pareceu-me de ramos de árvores agitados pelo vento e chuva. Mas depois começou a estalar. Como se o ramo fosse pisado por alguém. Olhei em volta e nada vi senão mármore e granito. No solo haviam apenas os meus rastos e os do carrinho. Ignorei o som mas quando retomei a passada voltei a ouvir o ruído. E berrei:
– Vai-te embora! Olha que conto ao teu pai!
Tinha pensado que era uma criança. Todos os anos atreviam-se a percorrer o cemitério na noite de bruxas. Nunca apanhei uma, mas fosse eu um homem afamado por uma violência que não possuía e era vê-las a não mais se atreverem. Puxei o carrinho de mão e, novamente, o maldito ruído! Aligeirei o meu passo; quis ignorar que fosse comigo, quis mostrar-me valente, que não sentia-me afectado. O barulho não cessava. Ouvia os sons rastejar nas minhas costas. Dei um passo: ramos que agitavam uns aos outros; dei dois passos: galhos rebolavam aos meus pés. Sem revelar a minha intenção, espreitei acima do ombro. Mais uma vez não via movimentos nem nada que justificasse aquilo. Dei uma mirada ao corpo, permanecia equilibrado no carrinho; ao seu lado estava a pá, seria fácil pegar e manusear a pá caso fosse preciso. Tentei ficar calmo. Sem ceder ao pânico e sem movimentos apressados; é difícil manobrar o carrinho num solo escorregadio como estava nessa noite. Os barulhos soavam alto, eu prosseguia a minha caminhada. Parecia que não mais alcançava aquele pedaço de terra que nunca era perturbado por alguém, seja vivo ou morto; a escolha mais propícia. Alguns passos: arbustos arrancados do solo. Outros passos: folhas secas ripadas. Fechei os olhos, deixei que os meus passos me guiassem. Estava rodeado de um caos amontoado de galhos, ramos, troncos. Enfileiravam paredes vivas de madeira, um cerco que estreitava mais e mais o caminho. Senti-me fechado num caixão. Rangiam na minha pele. Rachavam, estilhaçavam. Os mortos agitavam os caixões, era uma tempestade. Choviam caixões, estalavam ao bater na pedra dos jazigos e lápides. Madeiras que se quebraram na minha nuca. Recolhi os ombros e escorreguei-me todo pela lama. Não havia ali ninguém. No solo e nos meus pés nada havia senão terra e relva. Desvairava-me que ouvisse estalos em cada passada e depois o ruído cessasse quando eu ficava imóvel. Por fim, dei-me conta: tive a sensação que aquele tumulto provinha do carrinho. Não tinha dado logo conta porque não sentia vibrações que propagassem do carrinho para a minha mão. Mas convenci-me que, fosse lá como fizesse, era a morta que o fazia.
Estiquei os dedos e toquei ao de leve no tecido molhado da mortalha. Fiz pressão e retirei a mão imediatamente. O corpo permaneceu imóvel nas tábuas do carrinho. Como se a quisesse acordar, com ambas as mãos abanei-a. O meu temor confirmou-se. Nos centímetros em que a desloquei sobre as tábuas do carrinho, roncou tudo à minha volta. Causou-me até uma tontura, tive que segurar-me ao carrinho. Eram umas tábuas rijas, de duro carvalho. O som misterioso era de madeiras apodrecidas. Espetei a pá no solo. Onde eu estava era um bom local; decidi iniciar o enterro. Agarrei uma boa porção do tecido junto aos ombros do cadáver, fiz força para o levantar e o retirar do carrinho, mas escorregou-me das mãos, caiu na lama. Foi doloroso, levei as mãos aos ouvidos mas de nada serviu; caí por terra. O meu coração ficou pequeno. Faltou-me o ar. Parecia que me estavam a apertar o pescoço, que imobilizassem os meus pulmões. Prostrei-me na lama, fiquei de gatas a recuperar o fôlego, a controlar as lágrimas que sentia fugirem. Fui idiota em ter aceitado o trabalho. Devia ter atirado as moedas à cara daquele homem, mandá-lo às favas, que fosse ele a fazer o trabalho. Era fácil, era queimar, atirar para uma vala, devia ter percebido no que me estava meter naquela noite.
Decidi-me a ver o rosto dela. Perdi demasiado tempo a tentar desatar um nó e depois um outro. Eram nós bem apertados. Encontrei uma dobra no tecido que, sendo puxada, me permitiria espreitar. Puxei e alarguei a folga, destapei o rosto. A pele era pálida, luzidia ao luar. Desviei as madeixas molhadas dos olhos cerrados. Afaguei os lábios cinzentos com o polegar. Era tão nova, ali deitada parecia pura. Não parecia alguém que pudesse deixar a mim amedrontado, a uns homens a um ponto tal de a matar. Homens que provavelmente não tiveram escrúpulos em profanar o corpo da rapariga. Encostei o meu ouvido aos seus lábios. Não esperava ouvir a voz, a respiração. Estava morta, eu sabia bem. Mas esperava descortinar a origem daqueles barulhos. Esperava uma pista de um qualquer engenho que detectasse os meus passos e que tenha sido colocado dentro dela. Uma operação cirúrgica que certamente teria deixado feridas e hematomas. Puxei a dobra do tecido com mais força, expus o busto e veria com os meus olhos uma qualquer prova do atrevimento dos homens.
Os sinos da igreja da aldeia repicaram. Para meu terror constatei-me que era meia-noite. Estava fora de casa, sozinho e com um corpo, e barulhos que me perseguiam e me tornavam insano. Pedi a Deus que me ajudasse. Joelhos no chão, dedos entrelaçados, implorava e implorava, pedi que me tirasse dali, pedi desculpa, desculpa por ter desafiado as forças do diabo. Que ofereceria o ouro aos pobres se conseguisse sair dali vivo. Por um momento fiquei na reza e a pensar no que faria. Temi que ao levantar o corpo do chão ouviria um barulho infernal. Com alguma vergonha, penso que nesse momento tinha chorado um pouco. Prendi com delicadeza o tecido da mortalha junto ao pescoço dela. Deixar tudo como estava, o melhor que fosse possível, apesar da lama, da chuva. Fechei os olhos, preparei-me para o barulho mais estrondoso que eu viesse a ouvir na minha vida inteira. Desfaleceria se me fosse fulminante, um ressono furioso, mas avancei. Inspirei fundo. Peguei no lençol. Levantei-a.
Silêncio.
Não ouvia nada. Nem um pio, um sussurrar do vento, o afagar da chuva nas poças de água. Deixei cair o corpo e afastei-me de uma forma trôpega, atarantado por ver os meus pés chapinarem nas poças de água e os ouvidos nada captar. Desequilibrei-me. Foi como se estivesse a flutuar para o céu nocturno. A dor palpitou pela minha cara, tinha estatelado na terra. Levantei-me com dificuldade. Nunca encontrava equilíbrio. Deitado no chão, via em redor as árvores a dançarem com o vento, uma música que não escutava. A chuva perturbava as poças de lama mas eu nada ouvia.
Um murmúrio, uma voz a chamar-me. Olhei ao redor. Senti que era a voz da rapariga morta mas não sei dizer porquê. Caí de joelhos e aproximei meu ouvido dos lábios da morta. Claro que eu já não raciocinava. Talvez esperasse que voltar a ouvir fosse o mesmo que voltar a sentir-me são. E ouvi. A voz disse:
– Olha para cima.
Apertei os ombros da morta com mais força e não me atrevi nesse momento a desviar o meu olhar daquele rosto sereno e fazer o que a voz me tinha pedido. Com tudo que aconteceu nessa noite eu receava o pior, nunca tive tanto medo como nesse momento, meu Deus, receava que olhar para cima fosse a minha morte. Que fosse a Morte que tivesse aparecido e que fossem aquelas palavras as que um homem ouviria na sua presença.
Ergui finalmente o meu rosto. Pairava uma figura sobre mim. Não possuía qualquer traje, apenas uma leve luz a cobria. Não senti medo, tomei-a como um anjo. Reconheci a figura como sendo a rapariga morta, era igualzinha a ela, e permaneci ajoelhado perante ela, aturdido pela sua nudez, posso dizer agora que penso nisso. Quando cresceres, vais perceber porquê numa dada altura. Quando ela sorriu, e soltou um risinho, cristalino naquele silêncio, mas diabólico até como se espalhou pelo seu rosto, foi quando comecei novamente a entrar em pânico. Não consegui fugir, só escorregava na lama sempre que fazia um movimento desesperado, mas ninguém teria a cabeça para pensar direito numa situação destas, só queria sair dali mas não fui capaz de mais do que alguns metros. A figura continuou a rir, até que mirou o corpo envolto na mortalha. Ficou triste ao reconhecer-se a si própria, julgo eu, fez uma careta, mas quando voltou a olhar para mim ficou feliz, tão radiante. A risada arrepiou a minha nuca. Era a mim que queria. Não fugi. Não vi nada do que haveria de fazer.
Vivia numa aldeia de gente parva que acreditava em toda a coisa mais imbecil, mas dou toda a razão a essa gente, durante todo o tempo eles tinham razão sobre a noite de bruxas. Os espíritos, os fantasmas, bruxas e não sei que mais, eles existem, sim. Eles existem, meu rapaz. Eu estava a ser perseguido por um. Repetia sempre “meu príncipe do meu coração”.
– Meu príncipe do meu coração, estamos enfim juntos. Resultou o meu feitiço, estamos juntos e estou tão feliz. Oh, e tu és muito giro. Meu príncipe do meu coração. – repetia o espírito e isso já estava a fazer-me enervar, não bastava estar borrado de medo, tinha também de aturar suspiros de amor além-morte, o que era demais numa noite para um homem medroso.
– Afasta-se!
– Ora, tonto! – risada. – Como queres que me afaste? Lancei um feitiço. E resultou, não vês? Esta noite qualquer feitiço é poderoso, qualquer um, e foi agora mesmo que se concretizou. Contigo! – risada.
Fiquei prostrado na lama, a recuperar o fôlego. O meu corpo encharcado tremia.
– Queria ficar com um homem rico quando soasse a meia-noite. Mas deixa-me mais feliz que a esta hora sejas tu quem está comigo. És muito giro, ah, ah. Vigoroso!
Rastejei aonde deixara o carrinho, os meus punhos escorregavam na terra, estava a perder forças no lamaçal. Agarrei a pá contra mim como a uma tábua de salvação. Havia um corpo a meros centímetros de mim mas os meus olhos duvidavam então do que viam.
– Mas tu estás… morta?
– Não vejo como isso possa ser um impedimento à nossa união. O meu feitiço foi projectado a espíritos, não aos nossos corpos. É lamentável que tenha perdido o meu, não devia ter antecipado o meu desejo antes da hora, o mal está feito, mas o amor que existe entre nós não será menos forte por isso. Será eterno, tal como são as nossas almas. Nunca terias uma oportunidade como esta. Mas a tua sorte é que a representação astral do meu ser também é bonita, não é?
Deu um rodopio. Uma risada. Eu estava de pé, munido da pá; caminhava até ela, pé ante pé, e quando ficou ao meu alcance espetei a pá contra ela, mas apenas cortei ar. Surgiu ao meu lado. Girei a pá muito rápido mas não a atingi. Vi-a pelo canto do olho: girei novamente mas falhei. Ouvi-a atrás de mim:
– Não tenhas medo, tu até vais gostar. Olha para mim: sou linda! Mas qual é o teu problema?!
Rodei a pá. Rapidamente rodei para o lado contrário. Rodava feito tolo. Ela desaparecia quando a pá lhe atravessasse mas nem por isso parei de brandir a pá. Era a única arma que tinha, mesmo que fosse inútil. O único efeito que surtia era que ela ficava mais e mais triste; isso motivava-me a continuar. Vi-a estendida no chão. Girei a pá. Mesmo antes de executar o movimento eu soube que a ia atingir em cheio. O mundo turbilhonou nos meus ouvidos. Uma cacofonia indistinta, paralisante. Aos poucos recuperei o mundo natural: a brisa soprava, a chuva tamborilava nas poças de lama, a bruxa falava em lado nenhum. Tinha desaparecido, para meu imenso alívio. Circulei pela área, nenhum sinal dela. Debrucei-me sobre o cadáver. Dei um jeito à mortalha e cobri a cabeça dela. Ficou desfeito o rosto que antes achara tão sereno.
Por um momento pareceu-me que era a melhor oportunidade de fugir mas não podia deixá-la ali. Logo de manhãzinha a gente da aldeia visitaria em peso o cemitério. Teria que lidar com a fúria da população. Perguntas sobre o cadáver tinham que ser respondidas; se os ânimos permitirem sequer a ocasião. E também não podia arriscar que ela voltasse a assombrar alguém. Eu tinha que enterrar o assunto. Nunca mais poderia ser vista.
Foi quando a vala já tinha três palmos de profundidade que dei-me conta que os sons começaram a abandonar o cemitério. A terra sob a pá a reprimir os queixumes. O assobio do vento a despedir-se de mim. Fiquei distante das coisas. Mergulhado no silêncio.
A voz parecia cansada.
– Não gosto de violência, não gosto nada de homens violentos. Se vais estar comigo tens que refrear esses modos. E também deves pensar em ser um pouco charmoso, não te custa nada. Ao longo do tempo vamos limar os teus defeitos, não te preocupes. – um risinho, uma expressão de contentamento.
Disse que queria um homem bom. Que devotaria a mim a sua existência mas percebi que queria tudo à sua maneira, apenas um boneco nas suas mãos a quem chamar de seu príncipe. Eu já tive um amor, um grande amor que me foi tirado muito cedo. A juntar-me a alguém numa eternidade após a morte seria com o meu e único amor. Oh, desejava que, quando um dia morrer, as nossas almas se encontrassem e ficassem juntas, mas sei bem que isso não vai acontecer. Magoa-me mais agora que sei que a morte é, e sempre foi, na verdade, o início. E queria ela que ficássemos juntos só porque fez um feitiço que fizesse tal acontecer, a maldita bruxa. Não mais tive medo. Se era a ira que a mantinha afastada, então eu entregava toda a que estivesse em mim. Crispei as mãos no cabo da pá. Ergui-a alto e avancei um passo; uma martelada no cadáver com a pá.
Que bom era ouvir o meu riso. Comecei a rir cada vez alto, decidi até rir mais alto do que ela, ela não me ganharia em coisa nenhuma. Bati-lhe e bati-lhe. Manuseei a pá como se fosse uma lâmina. Destralhei-a toda, o sangue seco não correu. Foi pena, teria sido um prazer ver misturar-se com a terra e ser absorvido pelo tecido da mortalha.
Perdi o sorriso quando um leve ruído me fez olhar para trás. O meu coração tinha saltado, mas quem eu discerni no escuro não era quem esperava que fosse. Uma miúda mascarada estava entre duas lápides. Tinha uma máscara vermelha, um careto. Deve ter sido atraída pelo meu riso. Estava estática, e percebi em que ela pensava nesse momento: um coveiro que se diverte a destruir cadáveres à noite.
Ela fugiu e fui no encalço dela. Se tivesse acontecido numa outra noite de bruxas, se tivesse sido uma outra noite qualquer, talvez eu teria agido de maneira diferente. Teria enfrentado a população da aldeia, teria dito que o lugar da menina não era o cemitério e que eu tinha feito o meu trabalho ao expulsar crianças a vandalizar, as crianças é que costumam estragar e mentir, não devemos fazer caso do que as crianças dizem. Eu estava alterado após o que tinha acontecido nessa noite, não estava a raciocinar quando fui perseguir a miúda. Corri pelos corredores lamacentos, esperava apanhar a moça na saída do cemitério, ela correu em cima das campas, era pequena mas desembaraçava-se bem nos saltos sobre as lápides e nos passos entre as folgas das lajes. Já imaginava toda a espécie de castigo que a aldeia decidisse a aplicar-me. Era gente que praticava uma justiça célere, secular. Nada de tribunais, isso é coisa demorada e com honorários. A miúda não podia escapar de mim. Um dos costumes que preservaram era o recurso ao tronco da praça da igreja, um castigo que todos estavam habilitados a participar, que pudessem afinar a pontaria ou o que quer que quisessem fazer comigo, e já seria a minha melhor sorte. Não podia ser apanhado. Nem o pouco luar nem os jazigos a barrar-lhe a corrida enfraqueceram a sua determinação e foi num momento de sangue-frio que segui por uma ladeira que me atalhasse o caminho e pude capturá-la mesmo antes da saída.
Tirei-lhe a máscara vermelha. Tinha um rosto severo.
– Vou contar aos meus pais. – disse ela. Diabo, era inteligente e devo dizer que mais corajosa do que eu. Quando vi o saco de frutos que segurava, para o Pão-por-Deus que se faz de manhãzinha, ocorreu-me convencer a miúda com imensos frutos secos, chocolates e bolos por muitos dias caso ela portasse como uma menina boazinha. Teimava ameaçar que ia contar ao seus pais e eu insistia que portasse bem, dava-lhe todos os chocolates do mundo. Recusava e eu ouvia a sua voz mais baixinha, ouvia também a minha voz a sumir-se, deixei de ouvir o vento e chuva, não ouvia o cemitério, e os lábios dela a moverem-se e abrirem cada vez mais. Levantei a mão bem alto, eu não reflectia de todo…
Observo o meu neto de pés cruzados no tapete, os pequenos olhos e boca escancarados em mim. Vejo o meu braço erguido, a ilustrar o que tinha feito naquela noite.
Acabo a história, recolho o braço ao meu cadeirão. Já lhe disse tudo, contei até demasiado.
– Foi assim, meu rapaz, que aconteceu. Que fiquei surdo. Depois levei com as consequências por ter batido na coitada da miúda. Mas fiz bem pior depois, cheguei a ser implacável. Supus que quanto mais terrível fosse, quanto mais eu batesse e destruísse, mais hipóteses tinha de a fazer desaparecer, e definitivamente. Durante anos, meu Deus, nem me reconhecia com tanta crueldade. Foi há muito tempo. Arrependo-me de tudo o que fiz…
Sorrio para o meu neto.
– Percebeste tudo? Não falava há tanto tempo, nem sei se falei com clareza, espero que ainda tenha voz para perceber, tu percebeste? – Ele acena a cabeça e devolve o sorriso duma forma traquinas. Pega num novo cartão e rabisca novamente. Entrega-me o cartão e leio.
“Avô, se quiseres podes bater-me. Gostava que o avô ouvisse outra vez.”
– Ah, não, isso não! – dou um berro, para mim inaudível. – Nunca te faria mal, não me peças isso!
O meu neto olha para trás. Abre os seus braços e é levantado do chão pelo seu pai que lhe dá um forte abraço. O meu neto e o meu filho. O meu neto afaga o rosto do meu filho. Acaricia as cicatrizes e deformações daquele rosto, e sorri. Eu choro. O meu neto tem um sorriso lindo. Não sei como eles podem perdoar-me quando eu não me perdoo. Nunca. Foram procurar-me, mesmo depois de ter abandonado há imensos anos o meu filho. Cresceu longe de mim. Tornou-se em alguém que nunca quis ser igual ao seu pai. Atrás daquela muralha cicatrizada cresceu um coração bondoso. Fico aliviado por não ter permanecido escondido; alguém encontrou-o e não se deixou intimidar com a muralha.
Ao colo do seu pai, o meu neto escreve num novo cartão.
“Gosto de si, avô”.
Abraçamo-nos e despedimo-nos. O meu filho permite que eu também afague as cicatrizes. O meu neto dá-me um beijinho repicado. Estou feliz por terem-me visitado hoje. Foi uma vida longa em que vivi afastado de um mundo mudo, que falava comigo apenas pelas legendas dos filmes da televisão. Deito fora todos excepto este último cartão, guardo-o no bolso da camisa.
– Oh, dá-me também a mim um beijinho, meu príncipe do meu coração.
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A Lenda da Rainha Morta-Viva

– Vossa mercê está cada vez mais encantadora. – disse o cavaleiro negro. Apanhou a mão putrefacta da rainha D. Inês e levou-a aos seus lábios. Um beijo desgostoso. A fria carne alfinetou os seus lábios e um sabor a lixo queimado cobria-lhe a língua. O odor escorregou dentro de si e sentiu-o cair como uma pedra no estômago. Engoliu a bílis que lhe tinha subido na garganta e, com uma aparente calma, desceu as pequenas escadas do trono. Caminhou por entre os muitos convivas na sala do trono e não deu sinais de ter passado por uma experiência menos que desagradável e só quando já ninguém mais o via desatou-se a correr pelos corredores até à cozinha real. Agarrou num jarro de vinho e regou o conteúdo na sua língua. Bochechou e cuspiu. Ainda sentia o gosto. Novo jarro, para que relaxasse a garganta e acalmasse o estômago. Gole a gole, afogava o odor até que mergulhou num sono profundo.– A rainha é uma senhora tão linda, não creis? – Perguntou o rei.
Os convivas anuiram. A perseverança que partilhavam competia com o fedor da sala.
O rei inclinou-se no seu trono e chegou-se perto da face da rainha. Ela girou o rosto rígido, uma chiadeira deslizou no ar e chegou aos perturbados ouvidos dos presentes. Um beijo duro e negro nos dentes. Haviam apenas sombras de carnes.
O rei readquiriu a sua postura no trono e separou com a língua os seus lábios colados. Tinham vindo a reduzir-se a pus e maleitas. As suas olheiras afundavam-se em negrume.
– Quem mais vem cumprimentar a minha rainha? Façam o obséquio.
Os cavaleiros e sacerdotes entreolharam-se. Uns fingiam que não ouviram, com os olhos pregados no chão; outros faziam sinais com discrição para que os demais tomassem a iniciativa. Um cavaleiro aproximou-se das escadas do trono e subiu-as com bastante determinação. Os restantes olharam-no e admiraram a sua coragem.
Era um cobarde que não aguentava aquilo por mais tempo.
– Sim, minha majestade.

Era o Ano da Graça de 1355. D. Inês foi morta a mando do rei D. Afonso IV.
D. Pedro, filho do rei, estava enamorado dela e, no regresso de uma caça, acompanhado por seus nobres cavaleiros, perdeu-se nas matas de Coimbra quando soube que ali fora assassinada. Durante algum tempo, sozinho, chorou a morte da sua amada.
Retornou, por fim, à companhia dos cavaleiros mas não apareceu só. D. Inês caminhava ao seu lado. Envergava um longo vestido andrajoso e feridas abriam-se por todo o corpo. Os assassinos não se haviam feito rogados em estripá-la.
Ela sorriu e passou com o rei por entre os atónitos cavaleiros até à montada real.
Disseram os cavaleiros a quem os ouvisse que formou-se uma pequena fonte a partir das lágrimas que ela derramou enquanto pedia por clemência e que o sangue que dela jorrou tinha tingido a fonte. Assim nasceu uma lenda, de nome “Lenda da Quinta das Lágrimas”.
D. Pedro tornou-se rei de Portugal e desposou sua rainha D. Inês. O povo respeitou a sua vontade, era justo mas bastante severo quando ofendido. O reinado durou 12 anos até à morte do rei. O seu corpo estava morbidamente enegrecido.
O casal real foi sepultado no mosteiro de Alcobaça, em túmulos lado a lado. Por três vezes foi o túmulo da rainha perturbado pela insensatez dos homens.

***

Um cavaleiro subia a relva alta da floresta circundante de Coimbra. Estava apeado e segurava seu cavalo pelas correias, procurando causar nenhum som. O sol aquecia as árvores e nenhuma brisa as balançava.
Vislumbrou um corpulento javali que farejava uns cogumelos na raiz duma árvore. Retirou da sela do cavalo uma longa lança. Aproximou-se com vagar. Respirou fundo e aguardou. Puxou a gola irritante do linho castanho e recuperou a concentração. Ergueu a lança sobre a cabeça e, com algum balanço, atirou-a. Um voo rasante sobre o javali e aterrou em cheio no tronco da árvore. O baque do ferro na madeira assustou o animal, que fugiu e desapareceu para terras distantes.
O cavaleiro aproximou-se da árvore e reclamou a sua arma. O cabo era longo e de forte carvalho, e a sua lâmina era de um rude ferro mas eficaz. Na outra ponta do cabo estava fundida uma cruz de ouro. Cintilava com os raios de sol que perfuravam as ramagens da floresta.
Prendia-a novamente na sela, ao lado de um grande volume de um linhoso branco que pendia do dorso do cavalo, quando se apercebeu de sons de trote. Pé ante pé, espreitou por entre ramos baixos de arbustos. Um pequeno grupo de cavaleiros reunia entre duas baixas colinas. Um dos cavaleiros, de barba longa e cinzenta e que envergava a vestimenta mais impecável, gesticulava e apontava para um lado da floresta. Os outros cavaleiros trocaram algumas palavras. Dois deles surgiram de um ponto da floresta e juntaram-se ao grupo; apontaram na direcção donde haviam vindo e abanaram as cabeças de um lado para o outro. O de barba cinzenta partiu na direcção oposta, seguido pelos companheiros, todos a trote.
Aquelas eram terras demarcadas como couto de caça. Ali era onde o rei e os seus mais próximos fidalgos dedicavam tempo à caça. Também aqueles cavaleiros faziam o mesmo mas a caça deles era outra.
O solitário cavaleiro afastou-se, em passos silenciosos, dos baixos arbustos e, puxando pelas correias, levou o seu cavalo numa direcção diferente.
As árvores cerravam a caminhada e a escuridão fez-se de convidada. O cavaleiro deu um jeito ao volume branco que se pendurava no cavalo, receoso que pudesse dar uma queda. Retomou o seu passo. Até que alcançou uma clareira de intenso sol.
O terreno descia abruptamente e terminava numa diminuta ribeira, de extensão de uma dezena de pés, que brotava de um terreno inclinado como uma fonte. Na outra margem, alheio à sua presença, um veado maltratava um pequeno coelho, tendo-o encurralado sob a sua pata.
“Ah, finalmente encontrei-te”, pensou.
Deitou a mão ágil à lança. Desceu o terreno num salto e fez pontaria. Sua lança voou alta e aterrou de pé na outra margem húmida. O sol rompeu da cruz dourada erguida.
Os animais fugiram assustados para os seus lares, expulsos da clareira, mas algo ali ficou aprisionado.
Um brilho ardente. Tinha sido despido do disfarce do veado e ali estava, quieta, uma figura espectral. Um fogo que nada consumia e que dele nenhum fumo escapava. A sua altura duns quinze palmos impressionou o cavaleiro.
Sua voz vibrou no ar.
– Seu ignóbil humano. Que pensas que fazes?
– És tu, não és? És o demónio que, há algum tempo, ressuscitou a minha rainha.
O demónio ardeu vivamente o ar da clareira. Uma visão que aterrorizaria um qualquer incauto mas o cavaleiro não teve hesitação.
– Andei à tua procura. Tenho um pedido a fazer-te.
– O quê? Porque haveria de fazer algo por ti? Tu vais morrer, isso é o que posso fazer.
– Podes tentar, – Sorriu o cavaleiro. – mas a cruz de Cristo impede-te. Não te sentes tão forte como sempre, pois não?
O demónio ficou estático.
– Vais fazer o que te pedir. Ou sofrerás as consequências.
O cavaleiro começou a atravessar a pequena ribeira. A água humedeceu o tecido negro das calças até pouco abaixo dos joelhos. As sonoras passadas acompanhavam as secas palavras.
– Já antes enfrentei demónios. Não maiores que tu, é certo, mas sei ser capaz de enfrentar-te. Não tenho mais nada a perder.
Seus pés pisaram as relvas húmidas e aproximaram-se do demónio.
– Estive numa busca incessante, nem descansei até que te encontrasse. Vais, sim, fazer o que te pedir.
Deu um berro, alto e longo, como se quisesse chamar a natureza. Seu rosto até ficou corado.
– Aqui perto anda um grupo de exorcistas. Homens muito experientes no que fazem. A única maneira de lhes escapares está dentro de mim.
A chama engoliu ar ululante e rugiu.
– Dentro de ti? Não tens as forças necessárias contra mim, humano. Não sabes como seria comigo dentro de ti.
– Sei, sim. Já sofri bastantes batalhas interiores. E só tenho que aguentar até que cheguem os meus companheiros.
O demónio acreditou nele, e imediatamente procurou por formas de vida ao seu redor. Talvez um novo disfarce, um que não estivesse tão por perto.
– Procuras por animais de grande porte, não é? – questionou o cavaleiro. – Estás com azar. Estive esta manhã a limpar esta zona da floresta. Expulsei veados, javalis e tudo mais que pude.
O demónio crepitou-se numa inquietude.
– Eh, até um lobo faminto consegui afastar. Podes tentar e encontrar um, mas vai ser difícil.
– Desprezível humano, não podes vencer-me! Se lhes contares que estou dentro de ti irei queimar a tua alma, ouviste? Tornar-te-ei tão cruel até que sintas tão insuportavelmente miserável.
– Tentas fazer e vais arrepender-te. Os exorcistas verão que estou possesso e farão de tudo para que fiques no Inferno por muito, muito tempo. – Sem lhe virar costas, afastou-se devagar do demónio.
Sons de trote e de ramagens friccionadas soaram no topo da encosta.
– Então? Decide-te! – insistiu o cavaleiro. – Entra em mim ou vão apanhar-te!
O demónio agitou-se num deslumbrante fogo. Figuras de cavaleiros surgiram banhadas pela luz do sol.
O cavaleiro de barba cinzenta avistou o solitário cavaleiro que segurava uma lança enterrada. Desceu a encosta num rápido trote e mirou um cavalo que sorvia tranquilamente a ribeira e de novo mirou o cavaleiro. Franziu as cinzentas sobrancelhas.
– Tu, aqui? Pensei que não vinhas connosco.
Parou o cavalo na margem da ribeira e observou as árvores. Havia um aroma desagradável naquele local.
– O que aconteceu? Porque berraste?
– Chamei-vos! Vi o demónio que procurávamos. Partiu naquela direcção. – Apontou para as árvores acima donde a ribeira nascia. – Se partirem imediatamente ainda o podem apanhar.
– É mesmo? Homens! – bradou. – Naquela direcção, rápido, é o tal que procuramos! – Depois observou o cavaleiro apeado, o seu rosto e a sua lança. – Tentaste capturá-lo?
– Sim, comandante.
– E falhaste. E agora sabe que estamos aqui. Isso é um problema.
O comandante observou com desconfiança o jovem.
– Não está esquecida a vergonha que trouxeste à Ordem. Não devias estar connosco, não depois do que fizeste. É bom que doravante mudes o teu comportamento se não queres ter de novo o mesmo tratamento.
O jovem conteve um ardor no peito. Palavras zangadas aqueciam a sua garganta. Não podia perder o controlo e envolver-se numa discussão, não nesse momento. Os dois fitaram-se por alguns momentos em tom de desafio.
O comandante também não deixaria que o assunto terminasse ainda. Deixou ao cavaleiro um olhar de desprezo antes de virar a montada e galopar encosta acima. E penetrou na escuridão.
– Obrigado. Cumpriste a tua parte. – Disse o demónio.
O cavaleiro apalpou o seu torso como se tivesse guardado a sua alma num bolso e olhou para ele.
– Sinto-me na mesma, eu também agradeço, mas falta a tua parte do acordo.
– Sim. Qual é o teu pedido? – Impensável que tivesse sido vergado por um mero humano.
– A minha amada morreu no início da semana. – A sua voz quebrou-se em bocados. – Quero que a faças o mesmo que fizeste à rainha. Ressuscita-a.
Aquele pedido ultrapassava os desígnios do demónio. Tinha responsabilidades e procedimentos a respeitar. E não era propriamente o demónio mais poderoso a vaguear pelo mundo dos vivos.
– O teu rei deu-me um exército de almas em troca da da sua rainha. Eu recupero a tua amada em troca de nada?
– Em troca da tua liberdade, ainda vives neste mundo. Queres que volte a chamar os exorcistas?
O demónio não respondeu. Perscrutou o corpo coberto pela mortalha de linhoso branco. A pessoa que tinha sido em vida. Os momentos partilhados com o cavaleiro. A relação conturbada entre eles. O desprezo dos vizinhos. A vergonha nas penas de pato e esterco que a levou à morte.
– De facto… farei isso que pedes.
O cavaleiro sorriu, por tudo seguir o seu plano. Também o demónio sorriria se tivesse lábios, por tudo não seguir o plano.
– Carrega o corpo da tua amada e mergulha-o naquelas águas vermelhas como o sangue.
O cavaleiro observou que, entre dois arbustos repousados nas margens, uma ferida se abria na ribeira.
– São algas que lhe dão essa cor. São mágicas. Têm um poder extraordinário que me ajuda nesta tarefa. Vai, humano. Mas, antes de ires, retira a tua cruz de perto de mim. Fraco como estou não posso fazer isto.
O cavaleiro hesitou mas soube que assim tinha de proceder. Arrancou a lança do solo e atirou-a para tão longe quanto conseguiu.
Atravessou a ribeira, retirou o corpo do cavalo e desdobrou a branca mortalha que o cobria. As suas narinas enojaram com o fulgor do aroma desagradável. Os seus olhos deitaram-se no rosto dela. A pele dela estava tão pálida e já se começava a notar vários tons de cinza escura.
Deitou o corpo nas algas vermelhas. Acocorou-se sobre ele nas frias águas e fixou o rosto mergulhado. Depois observou o demónio, que emanava um brilho alvo, e novamente o cavaleiro fixou o rosto dela.
Algumas bolhas de ar fugiram do nariz; olhos abriram; de seguida a boca. Ela ergueu-se das águas e abraçou o cavaleiro. Tossia com violência.
O cavaleiro apertou-a contra si com mais força quando ouviu a voz dela.
– Que faço aqui? – Quebrou o aperto do cavaleiro com rispidez. Ergueu-se com desalento, como quem acabou por não dormir nada. Olhou para o seu corpo nu, para as mãos que se secavam ao sol.
– Foste tu quem me fez isto.
– Sim… – Disse ele, ajoelhado aos pés dela. – Trouxe-te de novo à vida.
– Não. Foste tu que me mataste. – Disse, mirando os olhos dele. – Eu lembro-me bem. Do que me fizeste.
– Amor, desculpa.
– Não tens desculpa! – Deu-lhe um estalo na boca.
–Eu não quis que isso tivesse acontecido! – Limpou o sabor de sangue com o polegar. – Dá-me uma nova oportunidade, vamos começar de novo…
– Cala-te. Não confio mais em ti.
– Sou um fraco, lamento muito. Eu só queria… – Desviou os olhos do olhar que o fulminava. – Só queria que alguém me amasse.
– E eu? Porque me convidavas a passeios por jardins se tu já tinhas mulher?
– Não, não! – Barafustava o cavaleiro, de joelhos suplicantes enterrados na lama da margem. – Nada disso. Conheci aquela moça noutro dia, muito, muito tempo depois de ti.
– Não foi isso que a gentalha percebeu…
– Era só a ti! Eu estava interessado era em ti, era só em ti que pensava todos os dias. Ai, eu estava confuso, estavas sempre distante, parecias que não gostavas do que te dizia ou da minha companhia. Tentei que gostasses de mim. E ela, não sei, pensei mesmo que ela estava interessada. Pensei que com ela pudesse ser feliz… Fui um fraco, ignorei o meu coração. Traí-te.
– Não acredito. – Disse, impávida e controlada. – Brincas desta maneira com a honra e graça de uma donzela? Merecia eu ser tratada desta maneira, o meu nome arrastado pela lama?
Deslizou as mãos pelos ombros, resguardando-os das frias memórias do dia em que a população os descobrira. Estavam num recanto de um jardim, a conversar, quando eles a agarraram, brutalizaram-na, arrastaram-na para um quintal e atiraram-na a uma poça de esterco de porcos. Atiraram penas de pato sobre ela. Foi despida e obrigada a percorrer as ruas da aldeia com o esterco a secar-lhe na pele ao sol. Saberia mais tarde que o cavaleiro tinha sofrido um castigo mais leve, um par de dias com os ombros presos no tronco da praça central, sem que ninguém o gozasse.
– Pensaram eles que seria eu uma meretriz. Passei dias em vergonha. Não resisti mais…
Levou as mãos ao pescoço. Não sentia diferenças no toque, mesmo na morte.
– Oh, querida donzela minha.
– Bastava teres pedido a minha mão. Percebes? Eu amava-te, claro que sim! Mas não podia entregar-te o coração sem primeiro revelares os teus intentos…
– Oh, meu amor… – Envolveu os joelhos frios dela num abraço forte. – este tempo todo eu podia… eu podia… Lamento tanto!
– Larga-me.
– Lamento.
– Larga-me, maldito! – Berrou. Puxou os cabelos negros dele e empurrou o seu peso sobre ele. A cabeça dele mergulhou na terra húmida da margem. Ela envolveu-o nas suas coxas. – Eu confiava em ti. Contava que tu me protegesses.
Ele tentou tirá-la de cima de si. O aperto das pernas era tenaz e o peso das mãos na cabeça era insuportável. Sentia a cabeça ser afundada na lama cada vez mais.
– A maioria dos mortos acorda devido a uma grande fome. – Fez-se ouvir o demónio que apreciava o espectáculo.
O cavaleiro usava os cotovelos para bater nos braços dela que não se cediam.
Tentou empurrar as costelas dela de cima de si. Em vão. Houvera dias em que ansiava levá-la ao colo. Desejara sentir o aperto dos seus braços, a ternura dos seus lábios. Teriam sido dias felizes. Não tentou impedir a raiva, deixou que ela aproximasse os lábios e os dentes ao seu pescoço. Totalmente merecido, não devia ter procurado a felicidade com outrem, não era o que seu coração queria, não o ouviu. O pior foi ter impedido a felicidade dela. Não havia maior dor. Era só a felicidade dela que mais interessava, foi sempre. Era só ela…
– A tua rainha acordou porque sentia um grande amor pelo teu rei. – Acrescentou o demónio.
Ela rasgou as carnes com os seus dentes. Sangue gotejava do seu queixo.
– A tua amada acordou porque tinha vingança a cumprir. A energia da vingança de um amor traído é imensurável. – Concluiu o demónio. Desapareceu por entre as matas de Coimbra.
Ela desfez o torso do corpo, devorou tecidos e quebrou ossos numa fúria incontida até arrancar o coração. Abocanhou o músculo rijo, desfibrando-o com os dentes em pequenos pedaços até que nada restasse e a ânsia desaparecesse. Não ficou totalmente satisfeita.

***

Ousou interromper o discurso do rei.
– Por favor, meu rei, não façamos mais isto. É tão errado…
Ajoelhou-se no frio do calcário. As mãos tão afastadas como se pudesse açambarcar a pedra ao seu colo.
– Guardas! – Disse o rei, agitado. – Agarrem o padre e façam-no calar, por Deus misericordioso!
– Por Deus misericordioso, não façam isso! – Insistiu o padre. Foi afastado pelos guardas, sacudido, mas pôde dizer uma última vez antes de ser silenciado com uns safanões convincentes. – A ira de Deus abater-se-á sobre os nossos corações se atrevermos a cometer este profano acto!
Estava a ser demais, o rei enfadava-se com a tanta demora e interrupção. A ele, o rei. Não entendia porque escutavam o padre e não cumpriam a sua real vontade em realizar uma pequena cerimónia. Estavam ali para homenagear o Amor. Não tinham que ter medo. Por serem todos no salão mais velhos que ele achou que perderam o fulgor da juventude e esqueceram-se do que é paixão. Achou que era o único com tanto para retirar de si, tivesse ele uma rainha.
Ergueu de novo o livro que segurava. Os escritos falavam não só de feitos gloriosos e de épicas campanhas de todo um povo mas falava também do maior amor de todos, isso era o que mais o satisfazia.
– Senhores, escutai-me. – Disse o rei com voz calma. – Não tendes que ter medo. Fazeis parte de um pequeno tributo ao mais sentido e apaixonado de todos os amores. Tão forte que até mesmo na morte foi vivido. Portanto peço-vos que larguem a tola superstição e orgulhem-se de estar ao meu lado.
Os guardas voltaram a respirar. Recompostos pelas palavras proferidas empunharam os pés-de-cabra. Enquanto o rei de novo recitava, a plenos pulmões, as últimas vinte e seis estrofes do terceiro canto do livro, dedicadas à donzela mais amada, os soldados aproximaram-se do túmulo dessa donzela e com os pés-de-cabra deslizaram o tampo do túmulo.
Ficaram aturdidos com o fétido odor que libertaram. Depois, pela serenidade nos olhos cerrados do corpo. Pelo dourado dos seus cabelos. Apesar do avanço negro da morte ainda tinha o brilho das peles alvas.
Quando a cantoria do rei se aproximava dela, e mais o zunzum curioso dos demais presentes, ela abriu os olhos e agarrou o pescoço de um soldado. Levantou-se e num instante saboreou o sangue dos que transtornaram o seu repouso. O pânico instalou-se, outros guardas tropeçaram no medo, alguns conselheiros e religiosos ajoelharam-se na oração e o rei agarrou atrás na vestimenta do padre.
Ela era bastante rápida a derrubá-los. Os mais medrosos nada faziam para resistir e os menos medrosos, que tinham até desembainhado as espadas, estavam apenas especados, como se mesmo morta os seus cabelos loiros ainda enfeitiçassem as mentes dos homens.
Quando ela se serenou e a fome já não lhe comandava a vontade, uma recordação de ter sido uma rainha brilhou na escuridão putrefacta da sua mente. Aos pés dos soldados mortos, dir-se-ia que uma remota tristeza rasou-lhe no espírito. Muito sangue tinha corrido no calcário, a necessidade sido muito saciada e se preparava para regressar ao túmulo quando ouviu um riso. Ao lado de um padre um rapaz agarrava o estômago enquanto ria. Não teria mais de quinze anos. Ostentava vestes ricas, jóias nos dedos, uma coroa na cabeça e um olhar tresloucado. Divertia-se com a morte dos seus homens, sem remorsos. Um jovem rei que facilmente sacrificaria o seu próprio exército na loucura de uma guerra.
Nem nos decorridos nem nos vindouros séculos tinha ela ouvido um riso tão perturbado.

***

Os dois soldados chegaram ao fim do corredor e abriram a porta. Seguravam tochas frouxas e transportavam ao ombro sacos com alguma prata e outros objectos que julgaram ser de maior valor. Olharam para trás, para o jardim do claustro, para corredores, janelas e telhados. Seguros que ninguém os via, atravessaram a porta. Uma imensa escuridão. Souberam até então orientar-se com as frouxas chamas pelos corredores e divisões do mosteiro mas a escuridão onde se encontravam permanecia imutável conforme avançassem. Não se vislumbravam manchas sombrias que denunciassem estruturas e paredes de rocha. Não se aventuraram a caminhar em direcção ao escuro. Ficaram algum tempo à porta de ouvido atento. Achando-se sozinhos deslizaram pelo conforto da parede calcária e nua. Na rocha estavam nem ornamentos esculpidos nem tapetes pendurados, apenas umas estreitas seteiras que eles esperavam que não traíssem a luz que carregavam.
Não tinham dado muito passos quando descobriram o fim da escuridão na parede perpendicular àquela que os orientava. Também era silenciosa, inexpressiva como a anterior. Também silenciosos caminharam os soldados, até que se brilhou à luz a madeira pintada de um grande portão. Era a maior porta que haviam encontrado no mosteiro e permitiu-lhes descobrir onde estavam situados: na grande nave central e aquela só podia ser a porta principal, e adivinhavam que tinham percorrido meia parede. Mas pareceu-lhes, quando caminharam até a uma diferente parede, que demoraram mais tempo a atravessar a outra metade. Ou tinham abrandado o passo sem se dar conta ou a curta luz e a antecipação de serem apanhados levaram-nos ao engano.
J’en peux plus. – Sussurrou um dos soldados. – Não posso mais, vamos embora. Temos o suficiente.
O companheiro moveu a tocha para o rosto do outro e viu nele a angústia. Os dentes cerrados e os olhos levantados. Nunca lhe vira os olhos assim. Os olhos moveram-se, várias vezes, na direcção da porta por que passaram. O companheiro respondeu-lhe com um olhar fixo. Passaram pela porta havia algum tempo. Virou de novo a tocha no sentido contrário. Perscrutou a escuridão avaliando o momento. Como em qualquer igreja na Europa, o comprimento é muito superior que a largura, a travessia no escuro iria demorar muito mas muito mais tempo. Mas no outro extremo havia uma outra saída, geralmente para uma rua mais escondida, e altares, vários altares recheados de arte sacra.
Ia comunicar ao outro a sua decisão mas reparou que ele deu um passo atrás.
Arrête! – disse em surdina.
Deixou cair o saco do ombro enquanto o outro se acercava.
Faites voir ta torche.
O outro aproximou-lhe a tocha. O companheiro levou a mão livre ao interior do seu colete e retirou um farrapo de tecido. Tencionava colocar o farrapo na tocha mas o outro desviou-a.
Non.
O companheiro acabou por colocar o tecido na própria tocha e o fogo ganhou força. Pegou no saco e mostrou-o ao outro, levantando-o sucessivas vezes, sopesando. Colocou-o ao ombro, ergueu a tocha para a escuridão, avançou alguns passos determinados e olhou para trás. Viu a modesta luz rodeada por escuridão, o outro tinha ficado para trás. Mas, passado alguns instantes a medirem forças com os olhares, o outro pegou do colete um pedaço de tecido e alimentou a sua tocha.
Caminharam durante muito tempo. Não estavam certos de quanto, pareceram-lhes minutos, pareceram-lhes horas. Só se viram a si próprios, a parede sempre igual e a escuridão. Só tinham as seteiras como referência mas não se lembraram de as contar, dava ideia que passaram por muitas mas de nada adiantava saber o número de janelas. Caminharam. A cada momento as passadas tornavam-se mais ansiosas. As vistas mais curiosas. O silêncio mais inquietante. Uma vez pensaram em regressar, na ideia de que a porta principal estivesse ainda mais perto do que a que estaria no outro lado do mosteiro, mas já avançaram tanto.
As tochas irradiavam cada vez mais insegurança. Não lhes permitia ver em toda a extensão mas era possível, de qualquer ponto do mosteiro, serem observados. Protegidos pela escuridão, poderiam vigiar os dois soldados, planear uma defesa, encurralar contra a parede. Aguardar pelo momento ideal e atacar.
Allez! – sussurrou. – Não podemos perder tempo.
Emmerde-toi!
Finalmente a parede terminou numa curva à direita. Viram uma porta aberta e atravessaram-na. Os fachos de luz iluminaram a pequena divisão. As paredes e chão estavam incrustados de pequenas tumbas. Acinzentadas, de bases trapezóides, só tinham tamanho suficiente para guardar ossadas, certamente de figuras importantes. Trocaram olhares, um soltou um impropério. O companheiro levou a tocha às tumbas, uma a uma, verificando se nada mais haveria.
Um baixinho som. Não identificou o som e mirou o colega. O outro respondeu com um encolher de ombros. Por momentos acautelaram-se que ocorresse de novo o som. Ouviram-no! Não estavam sozinhos. Deram passadas largas até ao vão da porta. Nada surgia da escuridão. Iluminaram de novo as tumbas. Nada se mexia. Abandonaram a divisão. Largaram os sacos e agarraram-se um ao outro. Brandiam as tochas no ar. Rodopiavam-as em todas as direcções. Sobressaltados em todo o instante por que fosse o fim. Sacaram das suas pistolas. Nada aconteceu, nada mais ouviram. Abanaram as cabeças e tranquilizaram-se um pouco. Apressaram em chegar-se à parede, tinham que encontrar a saída.
Encontraram um altar. E o que mais desejaram: esmolas ofertadas aos santos, castiçais de cobre, pedestais com elaborados pormenores, pequenas imagens. Foram buscar os sacos e escolheram o que mais compensava encher totalmente os sacos. Sobretudo as esmolas, arrancadas de suas caixas com as espadas que traziam à cintura. Eram habilidosos no manejo do silêncio.
Ficaram imóveis quando ouviram de novo o som. Um chiar agudo. Um gemido, um choro. Parecia que uma mulher choramingava mas soava a um sufoco, como se tivesse algo preso na garganta. O choro saía arrastado e vibrante, mas não tinham dúvidas que era feminino. Quiseram espreitar que mistério se tratava, quem seria ela. Por falta de atenção, um pontapeou um dos castiçais que havia no caminho. O pedestal bateu na pedra e rolou até sair da luz que transportavam. O outro levou à face a palma. Não mais voltaram a ouvir o gemido mas parecera perto. Seguiram a intuição e descobriram passos adiante dois altos túmulos, lado a lado.
Os túmulos eram ricos em pormenores e ornamentos. Imagens foram esculpidas nas suas faces. Formavam uma história mas não se deram ao trabalho de a interpretar. Ao nível do olhar, os túmulos eram encimados por esculturas de figuras em repouso, tendo como companhia estátuas de pequenos anjos. Ambas as figuras exibiam coroas.
C’est notre nuit! – Disse, não evitando um pequeno risinho. – É a nossa noite! Uma coroa. Devem ter enterrado aqui um rei e deve estar também aqui a coroa dele.
Agarraram e abanaram os ombros entre si de contentamento.
Prendre ici.
O companheiro segurou a tocha do colega. O colega desembainhou a espada, espetou-a na frincha entre o tampo e o sarcófago da rainha.
Je vais danser avec la reine.– Sussurrou. – Vou dançar com a rainha. É a minha vez, desta vez.
Non. – Redarguiu o companheiro. – Não temos tempo para isso. Talvez com o nosso pelotão noutro dia. Agora temos de ser rápidos. Temos de regressar ao acampamento antes que dêem pela nossa falta ou o Napoleão ainda nos manda para a frente russa. E ainda temos que esconder as coisas.
O outro não insistiu. Esforçava em fazer deslizar o tampo, era muito pesado. Empurrava centímetros de cada vez. Quando por fim foi-lhes suficiente a abertura, que mal deixava uma mão atravessar, espreitaram o interior do túmulo. Pareceu-lhes que não havia nada. Nem corpo, nem coroa.
Merde.
Ouviram um chiar. O tampo do túmulo do rei deslizava. De lá acudiu a visão de um crânio com cabelos loiros. Ergueu-se uma figura disforme e, num salto, caiu sobre os soldados. Uma espada era brandida mas a figura era demasiada rápida. O soldado apenas acertava nas faces dos túmulos.
O companheiro sacou da pistola e tombou a tocha no rastilho.

Um tiro despertou o abade que dormia num dos quartos do Dormitório. Levantou-se da cama e vestiu uma capa negra com ligeireza. Temia que a guerra tivesse chegado por fim ao seu refúgio e trataria de dar guarida e cuidados de saúde a quem quer que necessitasse. Encontrou nos corredores os monges aflitos, alguns transportavam vasilhas de água e toalhas ou ligaduras e frascos. Desceram as escadas, atravessaram os claustros e percorreram a nave, sempre liderados pelos que transportavam castiçais.
Chegados aos túmulos, assistiram a uma cena terrorífica: dois corpos estraçalhados estavam espalhados em largas poças de sangue.
– Oh, Nosso Senhor… – Repetiram baixinho e benzeram-se rapidamente, as mãos ora juntas em oração ora a desenhar cruzes nos rostos.
A Rainha tinha-os visto a se aproximar. Em movimentos rápidos, e antes que se apercebessem, abandonou o esconderijo atrás do seu túmulo e atirou alguns deles ao chão, deixando alguns inconscientes.
O abade viu horrorizado o perfil esquelético daquela criatura. Achou ser o diabo em pele e osso. E viu a coroa a enfeitar os cabelos loiros dela. Sempre era verdade a lenda local, a dama que foi morta e foi depois tornada rainha. Recordou os elementos da história: as lágrimas transformadas em rio, tingido com o sangue; a ocupação do trono ao lado do rei; a cerimónia da mão beijada.
Ajoelhou-se e tentou chamar o pouco da razão que pudesse existir no crânio dela, antes que magoasse ou matasse os monges.
– Minha rainha, espere… – Repetiu com determinação quando viu que não foi ouvido. – Minha rainha!
Ela girou a cabeça para trás das costas. Abanava o maxilar solto, como se mastigasse as palavras que a chamaram.
– Minha rainha… – O abade deu um passo ante passo. – Vossa mercê… está encantadora.
Agarrou a alva mão escurecida. Abeirou os lábios da mão, hesitantes. Recuavam e avançavam, vacilavam e investiam, e por fim se repousaram, com admirável persistência, na rigidez da mão morta.
– Minha rainha?
Foi salvo pela réstia de humanidade que sobrava naquele corpo decomposto.
Os monges assistiram com assombro a boa-vontade com que ela respondeu ao pedido do abade: retornou ao seu túmulo, subiu adentro e deslizou acima de si o tampo do túmulo. Os monges, ainda a recuperar do estranho acontecimento, deram os parabéns ao abade e sobretudo procuraram o seu conselho. Ele próprio mal estava refeito do que acontecera, nem sabia porque agiu dessa maneira. O certo é que não lhe agradava que aquela criatura esquecida pelo Senhor estivesse na Sua casa. E não podia ignorar o corpo que repousava no túmulo ao lado, o do rei. Tantas noites que devem ter trocado sussurros e carinhos, ou mesmo certos desejos. Teria que afastar os túmulos o mais possível, não conseguiria lidar de outra forma. Mas sabia o que fazer. Era a casa do Senhor, refúgio de todas as criaturas, mesmo as malfadadas pelo diabo.
Nessa madrugada teria um longo trabalho a fazer. Pediria aos monges que pegassem nas vasilhas de água e toalhas e limpassem o sangue do chão até ficar imaculado. Pediria ao caro homem que velava os mortos que tratasse de enterrar os dois soldados no cemitério reservado aos monges. Inventaria uma história que explicasse as mortes dos dois, provavelmente seriam desertores que ali se esconderam e foram apanhados por um esquadrão da tropa do Napoleão, sofrendo um castigo brutal até à morte pelos cães de busca. Depois encontraria um homem das obras de uma nova igreja que, com um pouco da argamassa usada na construção, vedasse ambos os túmulos. E, com as esmolas dessa semana recuperadas dos soldados, pagaria ao homem para que ignorasse a estranheza do pedido e que nunca contasse a alguém a tarefa executada.
E rezaria, muito, para que o segredo ficasse enfim permanentemente sepultado.

***

Entre casas antigas e pátios recatados, no calçado de calcário escuro da estrada, as rodas robustas do jipe estancaram-se finalmente após a viagem desde a base militar Centro de Aviação Naval de Aveiro. Botas negras de um couro imaculado teriam ainda de percorrer os metros do extenso pátio de terra na entrada do Mosteiro de Alcobaça.
– As mouras encantadas são das minhas predilectas. Temos também os tragos, os dianhos, os tardos. Temos lendas algumas fantasiosas e outras sinistras, sanguinárias. A minha especialidade são estas últimas. Por isso acho que estamos aqui pela lenda da rainha morta-viva, conhece-a?
– Não… já visitei este mosteiro muitas vezes e é a primeira vez que ouço falar. Em que consiste?
– Muita gente a conhece, se bem que apenas o seu lado romântico. É mais do que isso. Apesar de hoje ser a primeira vez que visito o mosteiro já li muito sobre a lenda. É sobre uma dama formosa, D. Inês, que foi morta e… que depois ressuscitou-se.
O homem que atravessava o pátio de entrada do Mosteiro era considerado especial pelos seus semelhantes no seu país. Havia feito importantes serviços pela nação e mantinha influências entre os oficiais de maior escalão. Vestia uma farda preta com a patente de tenente. Tinha aros redondos e pretos a enquadrar os seus olhos azuis e transportava uma pasta com documentos confidenciais.
– O quê? Não acredito!
– E que depois o rei a desposou e a fez rainha. Esta parte já conhece, não?
– O quê, alguém casar com uma morta? Nunca ouvi tal coisa!
– E ela também… hem… ela durante séculos matou pessoas. Ninguém se aproximava do túmulo.
– Oh, como espera que acredita nisso? É tão absurdo.
– Sim, não nego que pareça tudo um bocado rebuscado. Acredite que já ouvi muito disso. Para mais há acontecimentos que não jogam a favor desta lenda. Textos deixados pelos monges que aqui viveram, por exemplo, dizem que, na altura das Invasões Francesas, soldados abriram os túmulos, divertiram-se com o crânio da rainha e saíram incólumes.
– Está a ver, há provas. Porque mantém então interesse no túmulo?
– Não posso ignorar alguns aspectos da lenda… – Reflectiu. Há um lado inexplicável. Como ele, ao longo dos tempos homens sentiram atracção pela rainha, foram-na procurar. Suas vidas foram alteradas. – Sinto um grande fascínio pela lenda. Não temos muitas como esta, nem se aproximam. É especial, foi falada durante séculos pela Europa fora, dedicaram-lhe mil operetas, o amor do rei e da rainha foi o mais cantado até ao tempo da Julieta e do seu Romeu. Como este caso, levantar-se da morte, as pessoas só conheciam o Jesus Cristo e o Lázaro de Betânia.
O soldado que caminhava estava numa importante missão. Fazia parte de um grupo selecto para liderar os esforços de guerra. Levava a cabo investigações em diversos países, concretamente sobre forças sobrenaturais e pessoas místicas, para fortalecer o espírito do exército e ditar um resultado da guerra favorável.
– Nos bosques destas terras… há algo de maligno, sabe? De tempos a tempos pessoas são mortas. Não é estranho que sejam encontradas nos bosques, talvez tenham feito um passeio pela natureza, ou então quiseram desafiar a suposta veracidade dos mitos urbanos. Ou foram procurar os amigos que tinham desaparecido. O mais estranho são as circunstâncias das mortes. Os corpos sofreram profundos arranhões: as caras desfeitas, músculos trinchados, até mesmo mastigados. Os membros mutilados.
– Que horror… – Conseguiu dizer.
– Muitos pensaram que foram ursos ou alguns lobos mas não podia ser, não há alcateias nestas terras. Há pouco animais, e são pequenos, não conseguiriam fazer estas coisas. Por muito que negassem a veracidade dos factos nos seus espíritos, os cientistas só puderam chegar a uma conclusão: os danos foram causados por dentes humanos.
– Ah, daí o doutor pensar ser aquela ali… – Uma referência à rainha no túmulo.
– Sim. Sou um dos que defende essa teoria. E hoje foi uma boa oportunidade de visitar e estudar o túmulo dela. Mas, ah, não lhe disse o mais sinistro das mortes: os corpos têm o torso desfeito, um grande buraco. Os corações não estão lá e nunca foram encontrados.
– Oh, diabo.
O soldado aproximava-se da escadaria de acesso ao Mosteiro e iniciaria em breve a subida dos dezasseis degraus. Sorriu para os dois homens que estavam à porta. Os três deram um aceno de cabeça em cumprimento. Um movimento seco de mão dos que esperavam pelo soldado. Antes que ele chegasse à porta, foram ditos os pensamentos em falta.
– Sim… há algo de maligno nestas terras. Forças místicas que desconhecemos. Mágicas, poderosas. Nem há vinte e cinco anos aconteceu, a apenas trinta quilómetros de distância, em Fátima, o milagre do sol com a Nossa Senhora.
– Sim, recordo-me. Eu estive lá.
– Ah, sim? E que tal foi?
Tinha deixado um efeito forte mas não sabia que palavras melhor o descrevessem.
– Foi… inesquecível.
– Olha. Não creio ser a Rainha Inês quem anda a matar as pessoas.
– Como assim, doutor?
– Há argamassa no túmulo. Provavelmente foi usada para reparar os danos sofridos nas Invasões Francesas. Mas, principalmente, há argamassa por baixo do tampo. Mesmo que ela tivesse força para levantar o tampo seria impossível sair do túmulo.
– Mas… toda essa história que contou, de seres sobrenaturais, de pessoas brutalmente mutiladas…
Tentou saber ao que queria chegar o doutor com isso tudo, mas pausou o discurso. Um raciocínio falou na sua mente. – Oh, o doutor quer dizer que… há mais que uma?!
O doutor devolveu-lhe um sério olhar de soslaio.
– Não é essa a questão que eu colocava. Não quantas há escondidas no bosque, mas que forças malignas há no bosque que transforma as pessoas em bestas.
Gut Morgen, meine Herren. – disse o soldado que se aproximou nesse momento. – Bom dia, senhores.
Levantou alto o queixo e bateu alto as botas. Estendeu a mão e abanou as dos senhores com grande veemência.
Ich bin Lt. Hans Grutel, Offizielle des grossen Deutschland. Sie sind die Gesandter vom Präsident Salazar, ja?
– Doutor, disse que é o tenente de quem esperávamos e pergunta se somos nós os enviados do Presidente Salazar. – Traduziu para o doutor. Abriu um sorriso e confirmou que eram eles num alemão irrepreensível. – Ja, Offizielle, wir sind.
Meine Herren, wir nehmen von Förmlichkeiten Abstand. Ihr interessiert nicht meine bequeme Reise, auch nicht euere reizvolles Land. Wir besuchen sofort das Grab von der wunderbaren Königin. Mein Führer hat ein grosse Interresse an dem Bericht 1.
– Disse para irmos já ao túmulo da rainha. Para ele escrever um relatório sobre o que descobrirmos no túmulo para enviar ao Hitler.

FIM

Nota 1: As frases em línguas estrangeiras eram mero capricho meu, por isso deixo um agradecimento especial à Ana Ferreira na tradução para o Alemão.
Nota 2: O truque de usar expressões estrangeiras e depois a personagem falar português como se nada fosse foi roubado do livro "A rapariga que roubava livros" de Markus Zusak

1 - Meus senhores, deixemos de formalidades. Não interessa falar sobre a minha viagem confortável nem sobre as vossas terras de encantar. Vamos sem demora visitar o túmulo da fantástica rainha, sim? O meu Fuehrer terá um grande interesse em saber do meu relatório.

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A ilha

O homem tinha medo de espelhos. Não gostava de espelhos.
As pessoas gostam de espelhos pois reflectem a realidade, são verdadeiros. Ele achava-os mentirosos. Evitava-os sempre que podia, nem os tinha em casa. Vira neles a progressão, lenta e incisiva, da transformação que passara a ocorrer no seu rosto. Ao princípio tinham surgido sob olhos algumas escamas soltas, depois umas protuberâncias pelo rosto que ganhariam a forma de tentáculos. Sabia não ser assim, deslizava as mãos pela face e não sentia nada de anormal, mas quando se olhava ao espelho via um ser tentacular.
Procurara ajuda em vários psiquiatras. Todos diziam o mesmo. Era uma ilusão, uma falseada percepção da realidade. Só precisava de confiança, a solução estava nele próprio. O último deles propôs-lhe uma solução experimental, dado o desespero alarmante do seu paciente. Um lugar especial, numa ilha do Pacífico, era reservado para homens como ele. Ali estariam ausentes da sociedade e seria um recomeço: dos seus hábitos, dos seus comportamentos, sobretudo das suas personalidades.
Os homens residiam numa mansão branca, perdida na floresta imensa que cobria a ilha. Chamavam àquela casa “Covil”, nome apropriado para homens como ele; barbudos, despreocupados com a imagem, isolados do mundo, longe de olhares. Os quartos eram parcos em mobília e não tinham espelhos. Sentiu-se igual entre seus.
Frequentemente visitavam as praias da ilha, entre outras actividades lúdicas. Jogavam jogos e desempenhavam diferentes personagens, esqueciam daquelas que os levaram à ilha.
No mar, entre os seus banhos longos, via a sua figura reflectida nas águas. O rosto estava indistinto, confuso, talvez devido aos pequenos turbilhões de ondas, areias e sal, mas a silhueta cada vez mais se aproximava à de um homem. Sentia-se agradado e renovado.
Meses passaram e a todos eram visíveis melhorias nos estados de espírito, na comunicação e solidariedade entre todos.
Viram um golfinho nas águas da ilha. A barbatana dorsal a circular na superfície e a aproximar-se da praia, o corpo a confundir-se numa onda e a dar à costa. Todos ficaram incrédulos com a bizarrice no aspecto do animal que repousava nas areias. Tinha a cauda e a barbatana características dos golfinhos e o ventre branco. Mas a parte superior, tinham a certeza, era tal e qual a de uma mulher humana. Duvidavam do que viam, suspeitaram que seria mais uma ilusão. Aproximaram-se dela, quiseram conversar com ela. Ficaram enamorados. Aos seus olhos, era linda. Uma magnífica criatura. Não respondia aos seus avanços. Por mais palavras afectuosas que lhe dedicavam ela não dava sinais de gratidão ou de satisfação.
O homem, que antes se vira como um ser tentacular ao espelho, disse a todos que devia estar com ela, que eram iguais sob o signo da água, era o destino. Discordaram de tal facto, todos eram homens barbudos, ninguém era mais parecido com ela do que outros. A discussão subiu de tom, trocaram palavras furiosas, agressões foram acometidas. O homem que se achava igual a ela, quando caiu nas ondas que arrebentavam na praia, depois de uns safanões sofridos, viu nas águas pequenos e rápidos tentáculos. Sentiu-se derrotado.
Dela não sentiam nada senão desprezo.
Meses de recuperação foram varridos naquelas ondas. Ela viveu nas areias por mais umas horas. Não mais regressaram à ilha.
Voltaram a ser e sentir o mesmo de antes de terem estado na ilha mas ele já encarava melhor as coisas, não esperava mais nada. Não que tenha recuperado confiança. Aceitara tudo, simplesmente. Não esperava que enquanto vasculhasse livros antigos e entretivesse a sua curiosidade num alfarrabista no bairro antigo haveria de conhecer aquela mulher. Ela sorriu para ele. Ele haveria até de rodar a cabeça por toda a loja até constatar que não havia ninguém atrás dele. Foi a ele que ela prestava atenção. Foi a primeira vez que alguém lhe sorrira.
Passaram as últimas horas da tarde numa agradável conversa. Admirou o bonito sorriso dela, os seus olhos. Dizem que os olhos são as janelas da alma. De tanto fixar aqueles belos olhos azuis, o homem viu neles o reflexo da sua própria alma. Viu um rosto humano.

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A energia que nos move

Não a consegues ver, minha criança, mas ela está por toda a parte.
Só porque não criamos instrumentos capazes de a medir, de a pesar e de a replicar, isso não significa que não exista a Energia. Tudo o que vês e tocas é uma ínfima parte do Universo. A monumental restante parte é invisível. Mas é ela o combustível que tudo faz funcionar: move galáxias, transporta Luz e aquece o Universo. E nunca pára de crescer e renovar-se. Acreditamos nisso pois é a explicação que encontramos no comportamento do cosmo, em tudo e em cada coisa. É a única capaz de vergar o gravitelectromagnetismo que é a força de tudo. Ela cresce, imparável, manipula a luz, e infiltra-se nos recantos mais misteriosos do Universo. Está ao nosso redor. A energia está à nossa frente e está dentro de nós. É a centelha que anima os nossos corpos e estimula as nossas mentes. Sem ela seríamos apenas barro, pedra e água. Dentro de ti reside um mundo. É o mesmo dentro de mim. Partilhamos um mundo e é aí que vive a energia: nós somos a energia. Se fecharmos os olhos com força descobrimos estar em contacto uns com os outros, com todas as criaturas e com todo o Universo.
Falo de Amor. Ainda és nova para compreender mas o Amor faz aproximar duas pessoas. Aconteceu comigo e com a tua mãe, aconteceu com os teus tios; também há-de acontecer contigo. Sentimos algo em nós, no nosso âmago, quando conhecemos alguém. Dizem que as nossas energias se cruzam e reagem entre si e se tornam una. Ou então que elas se tornam irregulares e isso provoca excitação em nós. Não vemos acontecer, mas sentimos. Sentimos uma atracção. Não de corpos mas de almas. Elas unem-se e regenerem-se e novas energias são criadas, é esse o propósito. Novos nascimentos em todo o universo. Nova Vida. E depois, quando morremos, os nossos corpos desfazem-se e são absorvidos por toda a matéria, tudo é transformado; mas a energia é restituída inteira ao mundo invísivel, eternamente.
É como aquela história dos Anjos. Há uma interpretação intrínseca e pessoal das interacções entre energias, as deste mundo e as do que existe em nós, por isso as pessoas muitas vezes as encaram como anjos. As pessoas ao seu redor não vêem os anjos; apenas aquela que os escuta. É uma ideia bonita.
As energias em nós comunicam mais ou menos como estamos nós a comunicar pelo neuralnet, com os implantes nos nossos cérebros. Eu no planeta Marte, tu numa lua de Júpiter. Pensamentos a percorrer as distâncias espaciais. Indiferentes ao frio, ao vazio e aos ouvidos. Mesmo desafiando os limites da ordem das coisas, os meus pensamentos atravessam o vácuo bastante rápido mas tardam em alcançar-te. Precisas de alguns minutos para ouvires-me, tal como eu também vou precisar de algum tempo para me responderes e para eu te ouvir. Mas com as energias isso não aconteceria. Tomara nós saber medir as energias e tivéssemos nós tecnologia que as moldasse a nosso proveito, as conversas seriam instantâneas, mesmo que estivéssemos em extremos opostos do Universo. Como se estivéssemos lado a lado, imaginas isso? Oh, quem me dera poder neste momento estar a ler as tuas reacções. Espero que depois, quando responderes-me, envias também as tuas memórias de enquanto me ouvias. Será que achaste tudo divertido em saber, ou será que achaste-me aborrecido? Se calhar ainda não tens idade para entender esta invulgar natureza do Universo. Não faz mal, ainda tens a vida pela frente. Eu próprio julgo que não entendo totalmente.
Mas não era só disto que queria falar contigo. Já não me lembro, do que é que queria falar? Fico sempre perdido entre os meus devaneios… Distância, Energia, Amor, Luz… Natal! Era do Natal que queria conversar contigo.
Foi há 2150 anos que ocorreu o primeiro milagre da energia. Os cientistas chamam milagre aos fenómenos que não sabem ainda explicar, não totalmente. Foi numa pequena cidade; à semelhança de outras nesse tempo era suja, antipática e corrupta. Os habitantes, após um dia de trabalhos sujos, tinham-se recolhido nas casas e feito contas à vida.
Uma perturbação das forças cósmicas rasgou nessa noite as fronteiras entre os mundos. Julgamos que de início os habitantes da cidade tiveram uma sensação de calor no peito. Que reagiram com surpresa, mas sem medo, à emanação de luzes que lhes saltavam dos corpos. Uma luz branca que iluminava os caminhos. Ninguém sabe explicar, mas atribuímos a essa misteriosa luz as manifestações de Amor que ocorreram nas ruas da cidade. Mulheres desesperadas perdoaram os que cometeram ofensas sobre elas. Um homem muito rico decidiu recolher das ruas homens e mulheres famintos e ofereceu-lhes uma ceia. Um homem tirano apiedou-se de uma mulher grávida e cedeu-lhe a sua manjedoura quente onde ela pudesse dar à luz. Quando o bebé nasceu toda a cidade era luz. As pessoas juntaram-se ao redor da manjedoura e cantaram em harmonia e paz. As luzes refulgiram mais e subiram aos céus. Foi como se uma estrela brilhasse na cidade de Belém.
A mãe do recém-nascido falou: “Disse-me o Anjo que o reino Dele não é deste mundo. Quem O seguir poderá juntar-se a Ele numa vida eterna noutro mundo. Ama o próximo, é a verdade Dele”.
Nunca te esqueces que tens em ti a centelha do Amor. Esta noite reza, minha criança. Escuta dentro de ti os sussurros das energias. As palavras do Amor. Consegues senti-Lo?

[consultar mensagem da filha, id:42A29D64, nesta ligação]
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