– Vossa mercê está cada vez mais encantadora. – disse o cavaleiro negro. Apanhou a mão putrefacta da rainha D. Inês e levou-a aos seus lábios. Um beijo desgostoso. A fria carne alfinetou os seus lábios e um sabor a lixo queimado cobria-lhe a língua. O odor escorregou dentro de si e sentiu-o cair como uma pedra no estômago. Engoliu a bílis que lhe tinha subido na garganta e, com uma aparente calma, desceu as pequenas escadas do trono. Caminhou por entre os muitos convivas na sala do trono e não deu sinais de ter passado por uma experiência menos que desagradável e só quando já ninguém mais o via desatou-se a correr pelos corredores até à cozinha real. Agarrou num jarro de vinho e regou o conteúdo na sua língua. Bochechou e cuspiu. Ainda sentia o gosto. Novo jarro, para que relaxasse a garganta e acalmasse o estômago. Gole a gole, afogava o odor até que mergulhou num sono profundo.– A rainha é uma senhora tão linda, não creis? – Perguntou o rei.
Os convivas anuiram. A perseverança que partilhavam competia com o fedor da sala.
O rei inclinou-se no seu trono e chegou-se perto da face da rainha. Ela girou o rosto rígido, uma chiadeira deslizou no ar e chegou aos perturbados ouvidos dos presentes. Um beijo duro e negro nos dentes. Haviam apenas sombras de carnes.
O rei readquiriu a sua postura no trono e separou com a língua os seus lábios colados. Tinham vindo a reduzir-se a pus e maleitas. As suas olheiras afundavam-se em negrume.
– Quem mais vem cumprimentar a minha rainha? Façam o obséquio.
Os cavaleiros e sacerdotes entreolharam-se. Uns fingiam que não ouviram, com os olhos pregados no chão; outros faziam sinais com discrição para que os demais tomassem a iniciativa. Um cavaleiro aproximou-se das escadas do trono e subiu-as com bastante determinação. Os restantes olharam-no e admiraram a sua coragem.
Era um cobarde que não aguentava aquilo por mais tempo.
– Sim, minha majestade.
Era o Ano da Graça de 1355. D. Inês foi morta a mando do rei D. Afonso IV.
D. Pedro, filho do rei, estava enamorado dela e, no regresso de uma caça, acompanhado por seus nobres cavaleiros, perdeu-se nas matas de Coimbra quando soube que ali fora assassinada. Durante algum tempo, sozinho, chorou a morte da sua amada.
Retornou, por fim, à companhia dos cavaleiros mas não apareceu só. D. Inês caminhava ao seu lado. Envergava um longo vestido andrajoso e feridas abriam-se por todo o corpo. Os assassinos não se haviam feito rogados em estripá-la.
Ela sorriu e passou com o rei por entre os atónitos cavaleiros até à montada real.
Disseram os cavaleiros a quem os ouvisse que formou-se uma pequena fonte a partir das lágrimas que ela derramou enquanto pedia por clemência e que o sangue que dela jorrou tinha tingido a fonte. Assim nasceu uma lenda, de nome “Lenda da Quinta das Lágrimas”.
D. Pedro tornou-se rei de Portugal e desposou sua rainha D. Inês. O povo respeitou a sua vontade, era justo mas bastante severo quando ofendido. O reinado durou 12 anos até à morte do rei. O seu corpo estava morbidamente enegrecido.
O casal real foi sepultado no mosteiro de Alcobaça, em túmulos lado a lado. Por três vezes foi o túmulo da rainha perturbado pela insensatez dos homens.
***
Um cavaleiro subia a relva alta da floresta circundante de Coimbra. Estava apeado e segurava seu cavalo pelas correias, procurando causar nenhum som. O sol aquecia as árvores e nenhuma brisa as balançava.
Vislumbrou um corpulento javali que farejava uns cogumelos na raiz duma árvore. Retirou da sela do cavalo uma longa lança. Aproximou-se com vagar. Respirou fundo e aguardou. Puxou a gola irritante do linho castanho e recuperou a concentração. Ergueu a lança sobre a cabeça e, com algum balanço, atirou-a. Um voo rasante sobre o javali e aterrou em cheio no tronco da árvore. O baque do ferro na madeira assustou o animal, que fugiu e desapareceu para terras distantes.
O cavaleiro aproximou-se da árvore e reclamou a sua arma. O cabo era longo e de forte carvalho, e a sua lâmina era de um rude ferro mas eficaz. Na outra ponta do cabo estava fundida uma cruz de ouro. Cintilava com os raios de sol que perfuravam as ramagens da floresta.
Prendia-a novamente na sela, ao lado de um grande volume de um linhoso branco que pendia do dorso do cavalo, quando se apercebeu de sons de trote. Pé ante pé, espreitou por entre ramos baixos de arbustos. Um pequeno grupo de cavaleiros reunia entre duas baixas colinas. Um dos cavaleiros, de barba longa e cinzenta e que envergava a vestimenta mais impecável, gesticulava e apontava para um lado da floresta. Os outros cavaleiros trocaram algumas palavras. Dois deles surgiram de um ponto da floresta e juntaram-se ao grupo; apontaram na direcção donde haviam vindo e abanaram as cabeças de um lado para o outro. O de barba cinzenta partiu na direcção oposta, seguido pelos companheiros, todos a trote.
Aquelas eram terras demarcadas como couto de caça. Ali era onde o rei e os seus mais próximos fidalgos dedicavam tempo à caça. Também aqueles cavaleiros faziam o mesmo mas a caça deles era outra.
O solitário cavaleiro afastou-se, em passos silenciosos, dos baixos arbustos e, puxando pelas correias, levou o seu cavalo numa direcção diferente.
As árvores cerravam a caminhada e a escuridão fez-se de convidada. O cavaleiro deu um jeito ao volume branco que se pendurava no cavalo, receoso que pudesse dar uma queda. Retomou o seu passo. Até que alcançou uma clareira de intenso sol.
O terreno descia abruptamente e terminava numa diminuta ribeira, de extensão de uma dezena de pés, que brotava de um terreno inclinado como uma fonte. Na outra margem, alheio à sua presença, um veado maltratava um pequeno coelho, tendo-o encurralado sob a sua pata.
“Ah, finalmente encontrei-te”, pensou.
Deitou a mão ágil à lança. Desceu o terreno num salto e fez pontaria. Sua lança voou alta e aterrou de pé na outra margem húmida. O sol rompeu da cruz dourada erguida.
Os animais fugiram assustados para os seus lares, expulsos da clareira, mas algo ali ficou aprisionado.
Um brilho ardente. Tinha sido despido do disfarce do veado e ali estava, quieta, uma figura espectral. Um fogo que nada consumia e que dele nenhum fumo escapava. A sua altura duns quinze palmos impressionou o cavaleiro.
Sua voz vibrou no ar.
– Seu ignóbil humano. Que pensas que fazes?
– És tu, não és? És o demónio que, há algum tempo, ressuscitou a minha rainha.
O demónio ardeu vivamente o ar da clareira. Uma visão que aterrorizaria um qualquer incauto mas o cavaleiro não teve hesitação.
– Andei à tua procura. Tenho um pedido a fazer-te.
– O quê? Porque haveria de fazer algo por ti? Tu vais morrer, isso é o que posso fazer.
– Podes tentar, – Sorriu o cavaleiro. – mas a cruz de Cristo impede-te. Não te sentes tão forte como sempre, pois não?
O demónio ficou estático.
– Vais fazer o que te pedir. Ou sofrerás as consequências.
O cavaleiro começou a atravessar a pequena ribeira. A água humedeceu o tecido negro das calças até pouco abaixo dos joelhos. As sonoras passadas acompanhavam as secas palavras.
– Já antes enfrentei demónios. Não maiores que tu, é certo, mas sei ser capaz de enfrentar-te. Não tenho mais nada a perder.
Seus pés pisaram as relvas húmidas e aproximaram-se do demónio.
– Estive numa busca incessante, nem descansei até que te encontrasse. Vais, sim, fazer o que te pedir.
Deu um berro, alto e longo, como se quisesse chamar a natureza. Seu rosto até ficou corado.
– Aqui perto anda um grupo de exorcistas. Homens muito experientes no que fazem. A única maneira de lhes escapares está dentro de mim.
A chama engoliu ar ululante e rugiu.
– Dentro de ti? Não tens as forças necessárias contra mim, humano. Não sabes como seria comigo dentro de ti.
– Sei, sim. Já sofri bastantes batalhas interiores. E só tenho que aguentar até que cheguem os meus companheiros.
O demónio acreditou nele, e imediatamente procurou por formas de vida ao seu redor. Talvez um novo disfarce, um que não estivesse tão por perto.
– Procuras por animais de grande porte, não é? – questionou o cavaleiro. – Estás com azar. Estive esta manhã a limpar esta zona da floresta. Expulsei veados, javalis e tudo mais que pude.
O demónio crepitou-se numa inquietude.
– Eh, até um lobo faminto consegui afastar. Podes tentar e encontrar um, mas vai ser difícil.
– Desprezível humano, não podes vencer-me! Se lhes contares que estou dentro de ti irei queimar a tua alma, ouviste? Tornar-te-ei tão cruel até que sintas tão insuportavelmente miserável.
– Tentas fazer e vais arrepender-te. Os exorcistas verão que estou possesso e farão de tudo para que fiques no Inferno por muito, muito tempo. – Sem lhe virar costas, afastou-se devagar do demónio.
Sons de trote e de ramagens friccionadas soaram no topo da encosta.
– Então? Decide-te! – insistiu o cavaleiro. – Entra em mim ou vão apanhar-te!
O demónio agitou-se num deslumbrante fogo. Figuras de cavaleiros surgiram banhadas pela luz do sol.
O cavaleiro de barba cinzenta avistou o solitário cavaleiro que segurava uma lança enterrada. Desceu a encosta num rápido trote e mirou um cavalo que sorvia tranquilamente a ribeira e de novo mirou o cavaleiro. Franziu as cinzentas sobrancelhas.
– Tu, aqui? Pensei que não vinhas connosco.
Parou o cavalo na margem da ribeira e observou as árvores. Havia um aroma desagradável naquele local.
– O que aconteceu? Porque berraste?
– Chamei-vos! Vi o demónio que procurávamos. Partiu naquela direcção. – Apontou para as árvores acima donde a ribeira nascia. – Se partirem imediatamente ainda o podem apanhar.
– É mesmo? Homens! – bradou. – Naquela direcção, rápido, é o tal que procuramos! – Depois observou o cavaleiro apeado, o seu rosto e a sua lança. – Tentaste capturá-lo?
– Sim, comandante.
– E falhaste. E agora sabe que estamos aqui. Isso é um problema.
O comandante observou com desconfiança o jovem.
– Não está esquecida a vergonha que trouxeste à Ordem. Não devias estar connosco, não depois do que fizeste. É bom que doravante mudes o teu comportamento se não queres ter de novo o mesmo tratamento.
O jovem conteve um ardor no peito. Palavras zangadas aqueciam a sua garganta. Não podia perder o controlo e envolver-se numa discussão, não nesse momento. Os dois fitaram-se por alguns momentos em tom de desafio.
O comandante também não deixaria que o assunto terminasse ainda. Deixou ao cavaleiro um olhar de desprezo antes de virar a montada e galopar encosta acima. E penetrou na escuridão.
– Obrigado. Cumpriste a tua parte. – Disse o demónio.
O cavaleiro apalpou o seu torso como se tivesse guardado a sua alma num bolso e olhou para ele.
– Sinto-me na mesma, eu também agradeço, mas falta a tua parte do acordo.
– Sim. Qual é o teu pedido? – Impensável que tivesse sido vergado por um mero humano.
– A minha amada morreu no início da semana. – A sua voz quebrou-se em bocados. – Quero que a faças o mesmo que fizeste à rainha. Ressuscita-a.
Aquele pedido ultrapassava os desígnios do demónio. Tinha responsabilidades e procedimentos a respeitar. E não era propriamente o demónio mais poderoso a vaguear pelo mundo dos vivos.
– O teu rei deu-me um exército de almas em troca da da sua rainha. Eu recupero a tua amada em troca de nada?
– Em troca da tua liberdade, ainda vives neste mundo. Queres que volte a chamar os exorcistas?
O demónio não respondeu. Perscrutou o corpo coberto pela mortalha de linhoso branco. A pessoa que tinha sido em vida. Os momentos partilhados com o cavaleiro. A relação conturbada entre eles. O desprezo dos vizinhos. A vergonha nas penas de pato e esterco que a levou à morte.
– De facto… farei isso que pedes.
O cavaleiro sorriu, por tudo seguir o seu plano. Também o demónio sorriria se tivesse lábios, por tudo não seguir o plano.
– Carrega o corpo da tua amada e mergulha-o naquelas águas vermelhas como o sangue.
O cavaleiro observou que, entre dois arbustos repousados nas margens, uma ferida se abria na ribeira.
– São algas que lhe dão essa cor. São mágicas. Têm um poder extraordinário que me ajuda nesta tarefa. Vai, humano. Mas, antes de ires, retira a tua cruz de perto de mim. Fraco como estou não posso fazer isto.
O cavaleiro hesitou mas soube que assim tinha de proceder. Arrancou a lança do solo e atirou-a para tão longe quanto conseguiu.
Atravessou a ribeira, retirou o corpo do cavalo e desdobrou a branca mortalha que o cobria. As suas narinas enojaram com o fulgor do aroma desagradável. Os seus olhos deitaram-se no rosto dela. A pele dela estava tão pálida e já se começava a notar vários tons de cinza escura.
Deitou o corpo nas algas vermelhas. Acocorou-se sobre ele nas frias águas e fixou o rosto mergulhado. Depois observou o demónio, que emanava um brilho alvo, e novamente o cavaleiro fixou o rosto dela.
Algumas bolhas de ar fugiram do nariz; olhos abriram; de seguida a boca. Ela ergueu-se das águas e abraçou o cavaleiro. Tossia com violência.
O cavaleiro apertou-a contra si com mais força quando ouviu a voz dela.
– Que faço aqui? – Quebrou o aperto do cavaleiro com rispidez. Ergueu-se com desalento, como quem acabou por não dormir nada. Olhou para o seu corpo nu, para as mãos que se secavam ao sol.
– Foste tu quem me fez isto.
– Sim… – Disse ele, ajoelhado aos pés dela. – Trouxe-te de novo à vida.
– Não. Foste tu que me mataste. – Disse, mirando os olhos dele. – Eu lembro-me bem. Do que me fizeste.
– Amor, desculpa.
– Não tens desculpa! – Deu-lhe um estalo na boca.
–Eu não quis que isso tivesse acontecido! – Limpou o sabor de sangue com o polegar. – Dá-me uma nova oportunidade, vamos começar de novo…
– Cala-te. Não confio mais em ti.
– Sou um fraco, lamento muito. Eu só queria… – Desviou os olhos do olhar que o fulminava. – Só queria que alguém me amasse.
– E eu? Porque me convidavas a passeios por jardins se tu já tinhas mulher?
– Não, não! – Barafustava o cavaleiro, de joelhos suplicantes enterrados na lama da margem. – Nada disso. Conheci aquela moça noutro dia, muito, muito tempo depois de ti.
– Não foi isso que a gentalha percebeu…
– Era só a ti! Eu estava interessado era em ti, era só em ti que pensava todos os dias. Ai, eu estava confuso, estavas sempre distante, parecias que não gostavas do que te dizia ou da minha companhia. Tentei que gostasses de mim. E ela, não sei, pensei mesmo que ela estava interessada. Pensei que com ela pudesse ser feliz… Fui um fraco, ignorei o meu coração. Traí-te.
– Não acredito. – Disse, impávida e controlada. – Brincas desta maneira com a honra e graça de uma donzela? Merecia eu ser tratada desta maneira, o meu nome arrastado pela lama?
Deslizou as mãos pelos ombros, resguardando-os das frias memórias do dia em que a população os descobrira. Estavam num recanto de um jardim, a conversar, quando eles a agarraram, brutalizaram-na, arrastaram-na para um quintal e atiraram-na a uma poça de esterco de porcos. Atiraram penas de pato sobre ela. Foi despida e obrigada a percorrer as ruas da aldeia com o esterco a secar-lhe na pele ao sol. Saberia mais tarde que o cavaleiro tinha sofrido um castigo mais leve, um par de dias com os ombros presos no tronco da praça central, sem que ninguém o gozasse.
– Pensaram eles que seria eu uma meretriz. Passei dias em vergonha. Não resisti mais…
Levou as mãos ao pescoço. Não sentia diferenças no toque, mesmo na morte.
– Oh, querida donzela minha.
– Bastava teres pedido a minha mão. Percebes? Eu amava-te, claro que sim! Mas não podia entregar-te o coração sem primeiro revelares os teus intentos…
– Oh, meu amor… – Envolveu os joelhos frios dela num abraço forte. – este tempo todo eu podia… eu podia… Lamento tanto!
– Larga-me.
– Lamento.
– Larga-me, maldito! – Berrou. Puxou os cabelos negros dele e empurrou o seu peso sobre ele. A cabeça dele mergulhou na terra húmida da margem. Ela envolveu-o nas suas coxas. – Eu confiava em ti. Contava que tu me protegesses.
Ele tentou tirá-la de cima de si. O aperto das pernas era tenaz e o peso das mãos na cabeça era insuportável. Sentia a cabeça ser afundada na lama cada vez mais.
– A maioria dos mortos acorda devido a uma grande fome. – Fez-se ouvir o demónio que apreciava o espectáculo.
O cavaleiro usava os cotovelos para bater nos braços dela que não se cediam.
Tentou empurrar as costelas dela de cima de si. Em vão. Houvera dias em que ansiava levá-la ao colo. Desejara sentir o aperto dos seus braços, a ternura dos seus lábios. Teriam sido dias felizes. Não tentou impedir a raiva, deixou que ela aproximasse os lábios e os dentes ao seu pescoço. Totalmente merecido, não devia ter procurado a felicidade com outrem, não era o que seu coração queria, não o ouviu. O pior foi ter impedido a felicidade dela. Não havia maior dor. Era só a felicidade dela que mais interessava, foi sempre. Era só ela…
– A tua rainha acordou porque sentia um grande amor pelo teu rei. – Acrescentou o demónio.
Ela rasgou as carnes com os seus dentes. Sangue gotejava do seu queixo.
– A tua amada acordou porque tinha vingança a cumprir. A energia da vingança de um amor traído é imensurável. – Concluiu o demónio. Desapareceu por entre as matas de Coimbra.
Ela desfez o torso do corpo, devorou tecidos e quebrou ossos numa fúria incontida até arrancar o coração. Abocanhou o músculo rijo, desfibrando-o com os dentes em pequenos pedaços até que nada restasse e a ânsia desaparecesse. Não ficou totalmente satisfeita.
***
Ousou interromper o discurso do rei.
– Por favor, meu rei, não façamos mais isto. É tão errado…
Ajoelhou-se no frio do calcário. As mãos tão afastadas como se pudesse açambarcar a pedra ao seu colo.
– Guardas! – Disse o rei, agitado. – Agarrem o padre e façam-no calar, por Deus misericordioso!
– Por Deus misericordioso, não façam isso! – Insistiu o padre. Foi afastado pelos guardas, sacudido, mas pôde dizer uma última vez antes de ser silenciado com uns safanões convincentes. – A ira de Deus abater-se-á sobre os nossos corações se atrevermos a cometer este profano acto!
Estava a ser demais, o rei enfadava-se com a tanta demora e interrupção. A ele, o rei. Não entendia porque escutavam o padre e não cumpriam a sua real vontade em realizar uma pequena cerimónia. Estavam ali para homenagear o Amor. Não tinham que ter medo. Por serem todos no salão mais velhos que ele achou que perderam o fulgor da juventude e esqueceram-se do que é paixão. Achou que era o único com tanto para retirar de si, tivesse ele uma rainha.
Ergueu de novo o livro que segurava. Os escritos falavam não só de feitos gloriosos e de épicas campanhas de todo um povo mas falava também do maior amor de todos, isso era o que mais o satisfazia.
– Senhores, escutai-me. – Disse o rei com voz calma. – Não tendes que ter medo. Fazeis parte de um pequeno tributo ao mais sentido e apaixonado de todos os amores. Tão forte que até mesmo na morte foi vivido. Portanto peço-vos que larguem a tola superstição e orgulhem-se de estar ao meu lado.
Os guardas voltaram a respirar. Recompostos pelas palavras proferidas empunharam os pés-de-cabra. Enquanto o rei de novo recitava, a plenos pulmões, as últimas vinte e seis estrofes do terceiro canto do livro, dedicadas à donzela mais amada, os soldados aproximaram-se do túmulo dessa donzela e com os pés-de-cabra deslizaram o tampo do túmulo.
Ficaram aturdidos com o fétido odor que libertaram. Depois, pela serenidade nos olhos cerrados do corpo. Pelo dourado dos seus cabelos. Apesar do avanço negro da morte ainda tinha o brilho das peles alvas.
Quando a cantoria do rei se aproximava dela, e mais o zunzum curioso dos demais presentes, ela abriu os olhos e agarrou o pescoço de um soldado. Levantou-se e num instante saboreou o sangue dos que transtornaram o seu repouso. O pânico instalou-se, outros guardas tropeçaram no medo, alguns conselheiros e religiosos ajoelharam-se na oração e o rei agarrou atrás na vestimenta do padre.
Ela era bastante rápida a derrubá-los. Os mais medrosos nada faziam para resistir e os menos medrosos, que tinham até desembainhado as espadas, estavam apenas especados, como se mesmo morta os seus cabelos loiros ainda enfeitiçassem as mentes dos homens.
Quando ela se serenou e a fome já não lhe comandava a vontade, uma recordação de ter sido uma rainha brilhou na escuridão putrefacta da sua mente. Aos pés dos soldados mortos, dir-se-ia que uma remota tristeza rasou-lhe no espírito. Muito sangue tinha corrido no calcário, a necessidade sido muito saciada e se preparava para regressar ao túmulo quando ouviu um riso. Ao lado de um padre um rapaz agarrava o estômago enquanto ria. Não teria mais de quinze anos. Ostentava vestes ricas, jóias nos dedos, uma coroa na cabeça e um olhar tresloucado. Divertia-se com a morte dos seus homens, sem remorsos. Um jovem rei que facilmente sacrificaria o seu próprio exército na loucura de uma guerra.
Nem nos decorridos nem nos vindouros séculos tinha ela ouvido um riso tão perturbado.
***
Os dois soldados chegaram ao fim do corredor e abriram a porta. Seguravam tochas frouxas e transportavam ao ombro sacos com alguma prata e outros objectos que julgaram ser de maior valor. Olharam para trás, para o jardim do claustro, para corredores, janelas e telhados. Seguros que ninguém os via, atravessaram a porta. Uma imensa escuridão. Souberam até então orientar-se com as frouxas chamas pelos corredores e divisões do mosteiro mas a escuridão onde se encontravam permanecia imutável conforme avançassem. Não se vislumbravam manchas sombrias que denunciassem estruturas e paredes de rocha. Não se aventuraram a caminhar em direcção ao escuro. Ficaram algum tempo à porta de ouvido atento. Achando-se sozinhos deslizaram pelo conforto da parede calcária e nua. Na rocha estavam nem ornamentos esculpidos nem tapetes pendurados, apenas umas estreitas seteiras que eles esperavam que não traíssem a luz que carregavam.
Não tinham dado muito passos quando descobriram o fim da escuridão na parede perpendicular àquela que os orientava. Também era silenciosa, inexpressiva como a anterior. Também silenciosos caminharam os soldados, até que se brilhou à luz a madeira pintada de um grande portão. Era a maior porta que haviam encontrado no mosteiro e permitiu-lhes descobrir onde estavam situados: na grande nave central e aquela só podia ser a porta principal, e adivinhavam que tinham percorrido meia parede. Mas pareceu-lhes, quando caminharam até a uma diferente parede, que demoraram mais tempo a atravessar a outra metade. Ou tinham abrandado o passo sem se dar conta ou a curta luz e a antecipação de serem apanhados levaram-nos ao engano.
– J’en peux plus. – Sussurrou um dos soldados. – Não posso mais, vamos embora. Temos o suficiente.
O companheiro moveu a tocha para o rosto do outro e viu nele a angústia. Os dentes cerrados e os olhos levantados. Nunca lhe vira os olhos assim. Os olhos moveram-se, várias vezes, na direcção da porta por que passaram. O companheiro respondeu-lhe com um olhar fixo. Passaram pela porta havia algum tempo. Virou de novo a tocha no sentido contrário. Perscrutou a escuridão avaliando o momento. Como em qualquer igreja na Europa, o comprimento é muito superior que a largura, a travessia no escuro iria demorar muito mas muito mais tempo. Mas no outro extremo havia uma outra saída, geralmente para uma rua mais escondida, e altares, vários altares recheados de arte sacra.
Ia comunicar ao outro a sua decisão mas reparou que ele deu um passo atrás.
– Arrête! – disse em surdina.
Deixou cair o saco do ombro enquanto o outro se acercava.
– Faites voir ta torche.
O outro aproximou-lhe a tocha. O companheiro levou a mão livre ao interior do seu colete e retirou um farrapo de tecido. Tencionava colocar o farrapo na tocha mas o outro desviou-a.
– Non.
O companheiro acabou por colocar o tecido na própria tocha e o fogo ganhou força. Pegou no saco e mostrou-o ao outro, levantando-o sucessivas vezes, sopesando. Colocou-o ao ombro, ergueu a tocha para a escuridão, avançou alguns passos determinados e olhou para trás. Viu a modesta luz rodeada por escuridão, o outro tinha ficado para trás. Mas, passado alguns instantes a medirem forças com os olhares, o outro pegou do colete um pedaço de tecido e alimentou a sua tocha.
Caminharam durante muito tempo. Não estavam certos de quanto, pareceram-lhes minutos, pareceram-lhes horas. Só se viram a si próprios, a parede sempre igual e a escuridão. Só tinham as seteiras como referência mas não se lembraram de as contar, dava ideia que passaram por muitas mas de nada adiantava saber o número de janelas. Caminharam. A cada momento as passadas tornavam-se mais ansiosas. As vistas mais curiosas. O silêncio mais inquietante. Uma vez pensaram em regressar, na ideia de que a porta principal estivesse ainda mais perto do que a que estaria no outro lado do mosteiro, mas já avançaram tanto.
As tochas irradiavam cada vez mais insegurança. Não lhes permitia ver em toda a extensão mas era possível, de qualquer ponto do mosteiro, serem observados. Protegidos pela escuridão, poderiam vigiar os dois soldados, planear uma defesa, encurralar contra a parede. Aguardar pelo momento ideal e atacar.
– Allez! – sussurrou. – Não podemos perder tempo.
– Emmerde-toi!
Finalmente a parede terminou numa curva à direita. Viram uma porta aberta e atravessaram-na. Os fachos de luz iluminaram a pequena divisão. As paredes e chão estavam incrustados de pequenas tumbas. Acinzentadas, de bases trapezóides, só tinham tamanho suficiente para guardar ossadas, certamente de figuras importantes. Trocaram olhares, um soltou um impropério. O companheiro levou a tocha às tumbas, uma a uma, verificando se nada mais haveria.
Um baixinho som. Não identificou o som e mirou o colega. O outro respondeu com um encolher de ombros. Por momentos acautelaram-se que ocorresse de novo o som. Ouviram-no! Não estavam sozinhos. Deram passadas largas até ao vão da porta. Nada surgia da escuridão. Iluminaram de novo as tumbas. Nada se mexia. Abandonaram a divisão. Largaram os sacos e agarraram-se um ao outro. Brandiam as tochas no ar. Rodopiavam-as em todas as direcções. Sobressaltados em todo o instante por que fosse o fim. Sacaram das suas pistolas. Nada aconteceu, nada mais ouviram. Abanaram as cabeças e tranquilizaram-se um pouco. Apressaram em chegar-se à parede, tinham que encontrar a saída.
Encontraram um altar. E o que mais desejaram: esmolas ofertadas aos santos, castiçais de cobre, pedestais com elaborados pormenores, pequenas imagens. Foram buscar os sacos e escolheram o que mais compensava encher totalmente os sacos. Sobretudo as esmolas, arrancadas de suas caixas com as espadas que traziam à cintura. Eram habilidosos no manejo do silêncio.
Ficaram imóveis quando ouviram de novo o som. Um chiar agudo. Um gemido, um choro. Parecia que uma mulher choramingava mas soava a um sufoco, como se tivesse algo preso na garganta. O choro saía arrastado e vibrante, mas não tinham dúvidas que era feminino. Quiseram espreitar que mistério se tratava, quem seria ela. Por falta de atenção, um pontapeou um dos castiçais que havia no caminho. O pedestal bateu na pedra e rolou até sair da luz que transportavam. O outro levou à face a palma. Não mais voltaram a ouvir o gemido mas parecera perto. Seguiram a intuição e descobriram passos adiante dois altos túmulos, lado a lado.
Os túmulos eram ricos em pormenores e ornamentos. Imagens foram esculpidas nas suas faces. Formavam uma história mas não se deram ao trabalho de a interpretar. Ao nível do olhar, os túmulos eram encimados por esculturas de figuras em repouso, tendo como companhia estátuas de pequenos anjos. Ambas as figuras exibiam coroas.
– C’est notre nuit! – Disse, não evitando um pequeno risinho. – É a nossa noite! Uma coroa. Devem ter enterrado aqui um rei e deve estar também aqui a coroa dele.
Agarraram e abanaram os ombros entre si de contentamento.
– Prendre ici.
O companheiro segurou a tocha do colega. O colega desembainhou a espada, espetou-a na frincha entre o tampo e o sarcófago da rainha.
– Je vais danser avec la reine.– Sussurrou. – Vou dançar com a rainha. É a minha vez, desta vez.
– Non. – Redarguiu o companheiro. – Não temos tempo para isso. Talvez com o nosso pelotão noutro dia. Agora temos de ser rápidos. Temos de regressar ao acampamento antes que dêem pela nossa falta ou o Napoleão ainda nos manda para a frente russa. E ainda temos que esconder as coisas.
O outro não insistiu. Esforçava em fazer deslizar o tampo, era muito pesado. Empurrava centímetros de cada vez. Quando por fim foi-lhes suficiente a abertura, que mal deixava uma mão atravessar, espreitaram o interior do túmulo. Pareceu-lhes que não havia nada. Nem corpo, nem coroa.
– Merde.
Ouviram um chiar. O tampo do túmulo do rei deslizava. De lá acudiu a visão de um crânio com cabelos loiros. Ergueu-se uma figura disforme e, num salto, caiu sobre os soldados. Uma espada era brandida mas a figura era demasiada rápida. O soldado apenas acertava nas faces dos túmulos.
O companheiro sacou da pistola e tombou a tocha no rastilho.
Um tiro despertou o abade que dormia num dos quartos do Dormitório. Levantou-se da cama e vestiu uma capa negra com ligeireza. Temia que a guerra tivesse chegado por fim ao seu refúgio e trataria de dar guarida e cuidados de saúde a quem quer que necessitasse. Encontrou nos corredores os monges aflitos, alguns transportavam vasilhas de água e toalhas ou ligaduras e frascos. Desceram as escadas, atravessaram os claustros e percorreram a nave, sempre liderados pelos que transportavam castiçais.
Chegados aos túmulos, assistiram a uma cena terrorífica: dois corpos estraçalhados estavam espalhados em largas poças de sangue.
– Oh, Nosso Senhor… – Repetiram baixinho e benzeram-se rapidamente, as mãos ora juntas em oração ora a desenhar cruzes nos rostos.
A Rainha tinha-os visto a se aproximar. Em movimentos rápidos, e antes que se apercebessem, abandonou o esconderijo atrás do seu túmulo e atirou alguns deles ao chão, deixando alguns inconscientes.
O abade viu horrorizado o perfil esquelético daquela criatura. Achou ser o diabo em pele e osso. E viu a coroa a enfeitar os cabelos loiros dela. Sempre era verdade a lenda local, a dama que foi morta e foi depois tornada rainha. Recordou os elementos da história: as lágrimas transformadas em rio, tingido com o sangue; a ocupação do trono ao lado do rei; a cerimónia da mão beijada.
Ajoelhou-se e tentou chamar o pouco da razão que pudesse existir no crânio dela, antes que magoasse ou matasse os monges.
– Minha rainha, espere… – Repetiu com determinação quando viu que não foi ouvido. – Minha rainha!
Ela girou a cabeça para trás das costas. Abanava o maxilar solto, como se mastigasse as palavras que a chamaram.
– Minha rainha… – O abade deu um passo ante passo. – Vossa mercê… está encantadora.
Agarrou a alva mão escurecida. Abeirou os lábios da mão, hesitantes. Recuavam e avançavam, vacilavam e investiam, e por fim se repousaram, com admirável persistência, na rigidez da mão morta.
– Minha rainha?
Foi salvo pela réstia de humanidade que sobrava naquele corpo decomposto.
Os monges assistiram com assombro a boa-vontade com que ela respondeu ao pedido do abade: retornou ao seu túmulo, subiu adentro e deslizou acima de si o tampo do túmulo. Os monges, ainda a recuperar do estranho acontecimento, deram os parabéns ao abade e sobretudo procuraram o seu conselho. Ele próprio mal estava refeito do que acontecera, nem sabia porque agiu dessa maneira. O certo é que não lhe agradava que aquela criatura esquecida pelo Senhor estivesse na Sua casa. E não podia ignorar o corpo que repousava no túmulo ao lado, o do rei. Tantas noites que devem ter trocado sussurros e carinhos, ou mesmo certos desejos. Teria que afastar os túmulos o mais possível, não conseguiria lidar de outra forma. Mas sabia o que fazer. Era a casa do Senhor, refúgio de todas as criaturas, mesmo as malfadadas pelo diabo.
Nessa madrugada teria um longo trabalho a fazer. Pediria aos monges que pegassem nas vasilhas de água e toalhas e limpassem o sangue do chão até ficar imaculado. Pediria ao caro homem que velava os mortos que tratasse de enterrar os dois soldados no cemitério reservado aos monges. Inventaria uma história que explicasse as mortes dos dois, provavelmente seriam desertores que ali se esconderam e foram apanhados por um esquadrão da tropa do Napoleão, sofrendo um castigo brutal até à morte pelos cães de busca. Depois encontraria um homem das obras de uma nova igreja que, com um pouco da argamassa usada na construção, vedasse ambos os túmulos. E, com as esmolas dessa semana recuperadas dos soldados, pagaria ao homem para que ignorasse a estranheza do pedido e que nunca contasse a alguém a tarefa executada.
E rezaria, muito, para que o segredo ficasse enfim permanentemente sepultado.
***
Entre casas antigas e pátios recatados, no calçado de calcário escuro da estrada, as rodas robustas do jipe estancaram-se finalmente após a viagem desde a base militar Centro de Aviação Naval de Aveiro. Botas negras de um couro imaculado teriam ainda de percorrer os metros do extenso pátio de terra na entrada do Mosteiro de Alcobaça.
– As mouras encantadas são das minhas predilectas. Temos também os tragos, os dianhos, os tardos. Temos lendas algumas fantasiosas e outras sinistras, sanguinárias. A minha especialidade são estas últimas. Por isso acho que estamos aqui pela lenda da rainha morta-viva, conhece-a?
– Não… já visitei este mosteiro muitas vezes e é a primeira vez que ouço falar. Em que consiste?
– Muita gente a conhece, se bem que apenas o seu lado romântico. É mais do que isso. Apesar de hoje ser a primeira vez que visito o mosteiro já li muito sobre a lenda. É sobre uma dama formosa, D. Inês, que foi morta e… que depois ressuscitou-se.
O homem que atravessava o pátio de entrada do Mosteiro era considerado especial pelos seus semelhantes no seu país. Havia feito importantes serviços pela nação e mantinha influências entre os oficiais de maior escalão. Vestia uma farda preta com a patente de tenente. Tinha aros redondos e pretos a enquadrar os seus olhos azuis e transportava uma pasta com documentos confidenciais.
– O quê? Não acredito!
– E que depois o rei a desposou e a fez rainha. Esta parte já conhece, não?
– O quê, alguém casar com uma morta? Nunca ouvi tal coisa!
– E ela também… hem… ela durante séculos matou pessoas. Ninguém se aproximava do túmulo.
– Oh, como espera que acredita nisso? É tão absurdo.
– Sim, não nego que pareça tudo um bocado rebuscado. Acredite que já ouvi muito disso. Para mais há acontecimentos que não jogam a favor desta lenda. Textos deixados pelos monges que aqui viveram, por exemplo, dizem que, na altura das Invasões Francesas, soldados abriram os túmulos, divertiram-se com o crânio da rainha e saíram incólumes.
– Está a ver, há provas. Porque mantém então interesse no túmulo?
– Não posso ignorar alguns aspectos da lenda… – Reflectiu. Há um lado inexplicável. Como ele, ao longo dos tempos homens sentiram atracção pela rainha, foram-na procurar. Suas vidas foram alteradas. – Sinto um grande fascínio pela lenda. Não temos muitas como esta, nem se aproximam. É especial, foi falada durante séculos pela Europa fora, dedicaram-lhe mil operetas, o amor do rei e da rainha foi o mais cantado até ao tempo da Julieta e do seu Romeu. Como este caso, levantar-se da morte, as pessoas só conheciam o Jesus Cristo e o Lázaro de Betânia.
O soldado que caminhava estava numa importante missão. Fazia parte de um grupo selecto para liderar os esforços de guerra. Levava a cabo investigações em diversos países, concretamente sobre forças sobrenaturais e pessoas místicas, para fortalecer o espírito do exército e ditar um resultado da guerra favorável.
– Nos bosques destas terras… há algo de maligno, sabe? De tempos a tempos pessoas são mortas. Não é estranho que sejam encontradas nos bosques, talvez tenham feito um passeio pela natureza, ou então quiseram desafiar a suposta veracidade dos mitos urbanos. Ou foram procurar os amigos que tinham desaparecido. O mais estranho são as circunstâncias das mortes. Os corpos sofreram profundos arranhões: as caras desfeitas, músculos trinchados, até mesmo mastigados. Os membros mutilados.
– Que horror… – Conseguiu dizer.
– Muitos pensaram que foram ursos ou alguns lobos mas não podia ser, não há alcateias nestas terras. Há pouco animais, e são pequenos, não conseguiriam fazer estas coisas. Por muito que negassem a veracidade dos factos nos seus espíritos, os cientistas só puderam chegar a uma conclusão: os danos foram causados por dentes humanos.
– Ah, daí o doutor pensar ser aquela ali… – Uma referência à rainha no túmulo.
– Sim. Sou um dos que defende essa teoria. E hoje foi uma boa oportunidade de visitar e estudar o túmulo dela. Mas, ah, não lhe disse o mais sinistro das mortes: os corpos têm o torso desfeito, um grande buraco. Os corações não estão lá e nunca foram encontrados.
– Oh, diabo.
O soldado aproximava-se da escadaria de acesso ao Mosteiro e iniciaria em breve a subida dos dezasseis degraus. Sorriu para os dois homens que estavam à porta. Os três deram um aceno de cabeça em cumprimento. Um movimento seco de mão dos que esperavam pelo soldado. Antes que ele chegasse à porta, foram ditos os pensamentos em falta.
– Sim… há algo de maligno nestas terras. Forças místicas que desconhecemos. Mágicas, poderosas. Nem há vinte e cinco anos aconteceu, a apenas trinta quilómetros de distância, em Fátima, o milagre do sol com a Nossa Senhora.
– Sim, recordo-me. Eu estive lá.
– Ah, sim? E que tal foi?
Tinha deixado um efeito forte mas não sabia que palavras melhor o descrevessem.
– Foi… inesquecível.
– Olha. Não creio ser a Rainha Inês quem anda a matar as pessoas.
– Como assim, doutor?
– Há argamassa no túmulo. Provavelmente foi usada para reparar os danos sofridos nas Invasões Francesas. Mas, principalmente, há argamassa por baixo do tampo. Mesmo que ela tivesse força para levantar o tampo seria impossível sair do túmulo.
– Mas… toda essa história que contou, de seres sobrenaturais, de pessoas brutalmente mutiladas…
Tentou saber ao que queria chegar o doutor com isso tudo, mas pausou o discurso. Um raciocínio falou na sua mente. – Oh, o doutor quer dizer que… há mais que uma?!
O doutor devolveu-lhe um sério olhar de soslaio.
– Não é essa a questão que eu colocava. Não quantas há escondidas no bosque, mas que forças malignas há no bosque que transforma as pessoas em bestas.
– Gut Morgen, meine Herren. – disse o soldado que se aproximou nesse momento. – Bom dia, senhores.
Levantou alto o queixo e bateu alto as botas. Estendeu a mão e abanou as dos senhores com grande veemência.
– Ich bin Lt. Hans Grutel, Offizielle des grossen Deutschland. Sie sind die Gesandter vom Präsident Salazar, ja?
– Doutor, disse que é o tenente de quem esperávamos e pergunta se somos nós os enviados do Presidente Salazar. – Traduziu para o doutor. Abriu um sorriso e confirmou que eram eles num alemão irrepreensível. – Ja, Offizielle, wir sind.
– Meine Herren, wir nehmen von Förmlichkeiten Abstand. Ihr interessiert nicht meine bequeme Reise, auch nicht euere reizvolles Land. Wir besuchen sofort das Grab von der wunderbaren Königin. Mein Führer hat ein grosse Interresse an dem Bericht 1.
– Disse para irmos já ao túmulo da rainha. Para ele escrever um relatório sobre o que descobrirmos no túmulo para enviar ao Hitler.
FIM