(sem título)

“Que sejai conhecida em toda a terra a história de Jesus da Casa de David, filho de José, filho de Jacob, filho de Matthan, filho de Eleazar, filho de Eliud, filho de Achim, filho de Zadok, filho de Azor, filho de Eliakim, filho de Abiud, filho de Zerubbabel,  filho de Shealtiel, filho de Jeconiah, filho de Josiah, filho de Amon, filho de Manasseh, filho de Hezekiah, filho de Ahaz, filho de Jotham, filho de Uzziah, filho de Jehoram, filho de Jehoshaphat, filho de Asa, filho de Abijah, filho de Rehoboam, filho de Solomão, filho de David, filho de Jessé”

Quando tinha 33 anos, Ele encontrou um inválido.
– Milagre! Eu não via e agora vejo! Vou espalhar a vinda do Messias. Quem és Tu?
– O meu nome é Jesus.
– Jesus? Mas qual Jesus?
A paciência Dele não era infinita como a do Seu pai.
– Oh, tenho mesmo de dizer tudo? Cansa-me um bocadinho de dizer.
– Como posso espalhar a Tua vinda sem saber quem és?
– Está certo. Sou o Jesus de Belém.
– Oh, eu também sou de Belém! Mas há muitos Jesuses em Belém…
– Sou Jesus de Belém, filho de José.
– Há pelo menos dez Josés em Belém com filhos que se chamam Jesus.
Devia haver uma forma mais fácil a Jesus de se apresentar ao ex-inválido.
– Jesus, filho de José e Maria.
– O quê? Como posso usar isso? Isso não serve!
– Mas só há um Jesus de Belém, filho de José e Maria.
– Oh, as mulheres não interessam para nada! Vá lá, filho de José, filho de…?
Resignado, lá disse o nome do Seu avô.
– Jesus de Belém, filho de José, filho de Jacob.
– Há quatro Jacobes com filhos que se chamam José e netos que se chamam Jesus…
Com o tempo que já se perdeu, teria sido melhor se tivesse dito nove nomes de sopetão.
– Jesus. De Belém. Filho de José. Filho de Jacob. Filho de Matthan.
– Se calhar é melhor dizeres mais um nome para ter a certeza. Não estou a ver mais nenhum Matthan mas esse pode ter vindo de outra terra.
Recusava em dizer mais nomes! Querem ver que queria que Ele desfilasse os nomes até chegar a Jessé?!
– Não. Vamos antes fazer assim. Chama-me Jesus Cristo. Acredita, toda a gente saberá quem sou.
E assim foi inventado o Apelido.

Publicado em Mini-Conto | Publicar um comentário

O quarto escarlate

Aviso à navegação: a seguinte ficção contém elementos gráficos sensíveis, tais como abuso corporal e profanação de cadáver.
Continuar a ler

Publicado em Conto, Terror | Publicar um comentário

Fotografia

Das águas frias e matutinas do mar, sai um garboso rapaz, prancha de surf no braço, madeixas loiras a gotejar. Sorri da forma especial que só os jovens a viver os seus anos mais puros sorriem. Ele possui, tal como muito poucos homens, um sorriso cativante ao qual é fácil, a quem o veja, corresponder-se com imensa franqueza. Todavia, assim que ele assomou-se à toalha estendida no areal, repara que, na toalha ao lado, a amada dele não sorri-lhe de volta. Provavelmente não assistiu às manobras dele na prancha, tão compenetrada está em olhar para outro lado da praia. Ele repara que o caderno de notas, que ela segura ao colo e traz sempre consigo, está aberto em duas páginas sem qualquer linha escrita. A caneta dela suspensa na mão.
– Então? ‘Tá tudo bem? – ele pergunta.
– Hm?
– Em que estás a pensar? Pareces triste.
– Sim… – ela diz. – Pensava na praia. Era tão larga quando era muito nova, e agora tão pequena. O mar quase chega à estrada. Puseram aqueles tubos para criar dunas artificiais mas de nada serviram.
– Pois. Não podemos fazer nada. Apenas aproveitar enquanto há.
– Não sentes alguma tristeza? – ela questiona – Não é apenas a praia que desaparece. Também a memória, a história e as pessoas que aqui viveram as suas vidas.
– Como assim?
– O Druidismo é-te familiar? Os druidas acreditam que os espíritos dos ancestrais povoam os lugares e os objectos que estimaram. Sobretudo árvores. O carvalho é uma árvore ancestral que, ao longo dos seus milhares de anos, preserva os espíritos dos chefes druidas que orientam e aconselham a quem for senti-los. Esta tristeza inquieta que sentimos nesta praia é a tristeza de espíritos que aqui repousaram.
Enquanto escutava a sua amada, ele afaga a areia fria. Com um punhado de areia, ele deixa cair um fio de grãos sobre as cores da sua toalha.
– Vê o meu caderno. – ela continua – Trago sempre comigo. É tão familiar a forma de como encaixa na minha palma, a rugosidade na ponta dos dedos, de como absorve os meus pensamentos. Tornou-se mais do que uma extensão do meu corpo. Não guarda apenas a tinta das minhas palavras, guarda o meu espírito, o meu ser.
– Também trazes–me sempre contigo. – atalha o amado – Também devo ter parte do teu espírito. Se eu não estiver por perto, deves sentir a mesma tristeza.
– Sim. Não é uma ideia bonita?
Sorriem.
Ele deixa-se cair na toalha, descansa a cabeça nas mãos atrás da nuca. Fecha os olhos.
– Não acreditas no que estou a dizer? – ela questiona.
– É uma ideia bonita. Eu gosto.
– Só acreditas nas provas, não é isso?
– Yeah, preciso de provas. Sabes que sou pela ciência.
– Então vou provar–te agora mesmo.
Ele ergue a cabeça e, de esguelha, espreita os movimentos das mãos da sua amada a remexer no conteúdo da mala dela. Descobre que retira da mala uma Polaroid, a peça antiquada que permite registar os instantâneos da vida em papel.
Ele esbraceja, escondendo o rosto nas costas das mãos, quando ela vira a lente da máquina para ele.
– Agora, não! – ele diz, entre risos – Não estou com disposição!
– Vá lá, deixa–me tirar–te uma foto! Não queres que eu prova–te a teoria?
Ela sorri, consciente de ter capturado, por entre os dissimulados braços, o cativante sorriso do seu amado.
O quadrado de papel sai da Polaroid. Vão ter de aguardar que, num acto de alquimia, os metais e cristais revelem o ínfimo momento. Ele achava engraçado que, num mundo com smartphones repletos de fotos esquecidas, ela usa uma máquina fotográfica instantânea e prefira registar momentos em quadrados um pouco mais pequenos que a palma da mão, aos quais anotar alguma palavras ou oferecer a amigos ou guardar no álbum que tem lá em casa e complementá–los com poemas e pensamentos.
– Estás a ver? – ela pergunta. Segura a fotografia de forma a que ele veja. Com um pequeno embaraço, ele vê perfeitamente a imagem revelada do seu rosto descoberto.
– É o teu espírito. – ela prossegue. – Tal como o meu caderno contém o meu espírito; a areia da praia contém os de outrora; o mar e o vento, os de todas as criaturas que alguma vez viveram; também aqui, neste pedaço de papel e químicos, está o teu espírito.
Ela gira a fotografia com um movimento amplo do braço, deslizando–a em toda a linha do horizonte.
– Onde a fotografia passará a estar, aonde ela for levada, poderás sentir à distância a mesma beleza que a fotografia contemplar.
Ele perscruta o mesmo horizonte, doutro lado do mar, para o qual foi a fotografia revirada, enquanto pensa nas palavras que ela proferiu.
– Oh, sim, – ele troça – muito convincente.
Ela volta a colocar a mão dentro da mala e, dum bolso no interior, retira um isqueiro de latão. Encosta a chama do isqueiro a um canto da fotografia.
– Igualmente, poderás sentir dor se a fotografia for danificada.
– Ok. – ele diz.
– Não acreditas? Vou queimar.
– À vontade…
Ele observa a distância entre a fotografia e a chama a reduzir–se aos poucos. Sente o coração a saltar–lhe no peito. Inesperadamente, ele começa a rir.
– Ok, não queimes!
– Estás a rir, porquê?
– Não sei! – ele tenta controlar o riso – Não sei o que se passa comigo! Mas não queimes a foto. Tão estranho… é como se significasse muito para mim.
– Então acreditas?
– Acredito em ti. Se dizes que sinto dor se queimares a foto, é porque sim.
Toda satisfeita, arruma o isqueiro na mala. Abre o seu inestimável caderno e, entre duas páginas ao calhas, deposita a fotografia.
– Oh! – ele sente, assim que ela fecha o caderno, um abraço terno; ainda antes dos braços dela esticar, alcançar e rodear o amado.
Publicado em Mini-Conto | Publicar um comentário

A velha de negro, a jovem de rosto enfaixado e a besta

Esta é uma história verídica. Já não peço mais que acreditem em mim. Tenho plena consciência dos elementos estranhos e demasiado fantásticos da minha história e, como tal, rapidamente desacreditada, como acontece a tantos outros testemunhos que foram relegados para meras lendas urbanas e histórias de terror produzidas por alguém com febril imaginação. Ao contrário de um escritor de ficção, eu meço as palavras com profundo rigor.
Apresento a minha pessoa: o meu nome é Doutor João Aveleira d’ Osório, médico, com especialidade em Medicina Geral, já com mais de trinta e cinco anos de carreira e inúmeros artigos médicos publicados. Com certeza, a minha reputação consagra a este texto honestidade e a autoridade que nunca tive na terra que recuso a nomear, situada numa encosta da Serra de Cabreira. Desde cedo, aquela gente minhota demonstrava alguma desconfiança, quiçá verbalmente, aos médicos que trabalhavam numa nova clínica, um dos primeiros centros de saúde de primeira geração, era eu muito jovem. Pese embora os modernos serviços da clínica, os cuidados terapêuticos prestados na vila continuavam a ser no seio da família, recorrendo a chás e poções comezinhos. Quando atendia pacientes, regra geral, eram os que tivessem tido acidentes de trabalho. E, como em qualquer outra terra, havia os seus próprios costumes locais, algo estranhos mas que agora não vale a pena entrar em detalhes. Era uma impressão que sentia nas ruas, no mercado e nas tabernas, causada pelo vasqueiro dos homens e pelo silêncio das mulheres. Mexericos havia de que, na intimidade do lar, mulheres mais ariscas atreviam-se a abrir a boca, prontamente fechada pelo punho do marido. Era inevitável, aceitável até, para alguns habitantes, que uma mulher sofra horrores na pele, literalmente.
Quando uma mulher assim apareceu-me perante olhos, senti um nó no coração. Era tão delicada nos gestos mas escondia de todos uma força interior. Tinha dado entrada na clínica, em que eu trabalhava, com quatro golpes num lado da sua face. Limpei e suturei as feridas, coloquei uma gaze na face e apliquei a toda a cabeça uma ligadura, deixando apenas a descoberto os seus olhos. Possuía uns olhos castanhos-escuros, sorumbáticos que fitavam o chão. Enquanto acompanhava o processo de recuperação, ouvi dela parcas palavras. Esteve a repousar durante alguns dias num quarto que lhe fora reservado.
Ainda hoje não compreendo as circunstâncias do seu desaparecimento. No dia em que ela ia ter alta, ao fim da tarde, antes de ir ao quarto da minha paciente remover as ligaduras do seu rosto, fui à secretaria assinar a alta médica. No corredor apanhei uma conversa entre duas enfermeiras que falavam, justamente, sobre a minha paciente. Como exemplo da mentalidade da vila, a conversa entre as enfermeiras era um disparate pegado. O que tinha acontecido ao rosto da minha paciente fora um ataque de ciúmes do seu amante, que fora merecido, que não devesse destratar o amor dele, e suspiravam para ter a mesma sorte de serem protegidas por alguém forte como um animal e com uma tal paixão que o levasse a agir como um animal, e mais disparates do género.
Censurei as enfermeiras e mandei-as retornar ao seu serviço, não sem antes referir que nada tem de romântico a violência no namoro. Era lamentável que validassem o castigo e que a minha paciente, logo que saísse da clínica, regressasse ao fulano que estragara-lhe a cara. Temi o pior, assim que entrei no quarto dela. Não havia vivalma. A cama estava desfeita e sobre os lençóis estava a bata de doente. O cabide na parede encontrava-se vago. Foi com uma rápida mirada pela janela que a vi, de vestido e casaquinho de malha e com as ligaduras por retirar da cabeça, a atravessar a rotunda à frente da clínica até a um homem que aguardava por ela de braços cruzados. Tinha um aspecto pouco tratado, de longas madeixas e barbas, e vestimentas sujas. Parecia era um simplório.
Saí imediatamente para a rua. Podia ter chamado pelas autoridades, estive indeciso do que seria o melhor a fazer, mas não podia perder a minha paciente de vista, e fui ao encalço deles que estavam já para lá da estrada nova, a descer pela relva da encosta até ao arvoredo no fundo do vale. Ela fez um gesto tão estranho. Pegou com delicadeza na mão dele e levou-o com ela, parecendo ser ele quem resignava-se a entrar na floresta.
Sendo aquele arvoredo o palco dos estranhos acontecimentos, pretendo doravante expô-los com maior detalhe para dar um sentido completo à minha narração.
Segui-os por um trilho tortuoso que curvava por entre as árvores, evitando que fosse por eles descoberto. Não foi fácil manter a minha devida distância quando eles atalharam adentro da mata. Seguindo os passos deles, circulei através dos matos e fetos, cujas raízes queixavam-se sob as solas duras dos meus sapatos e desviavam a minha atenção das duas figuras ofuscadas pelos troncos de carvalhos e bétulas. Um arbusto espinhoso apanhou a manga da minha bata que, estupidamente, trouxera comigo desde a clínica. Aflito com a atrapalhação e com a pressa de libertar a manga sem demora, puxei o braço com demasiada força e, com um sonoro rompimento, rasguei a manga. Mas não estavam por perto para ouvir.
Foi assim que vi-me sozinho no meio duma densa mata, em lado nenhum voltei a ver os movimentos do casal. Era um momento de impasse, se voltava para trás e tentava encontrar o caminho de regresso. Por um lado, estava nos idos de Novembro, principiava a noite e um frio de arrepiar a pele. Por outro lado, se ela perdesse a vida num local tão reservado, haveria de passar meses, mesmo anos, até que fosse descoberta. Então cometi o erro de penetrar mais pela floresta.
Era noite cerrada, escuridão abismal, ainda andava eu perdido no bosque. Esticava os braços à minha frente, em caminhada lenta, a tactear os perigos escondidos na treva absoluta. Ramos a agarrar-me, arbustos a atrapalhar-me. Folhagens no rosto. Carícias na nuca. Sons vivos a cercar-me. A única coisa que conseguia ver, entre as copas das árvores, era o céu estrelado. Não reconhecia nenhuma das estrelas mas faziam-me companhia sempre que olhava para cima. Inesperadamente, como se não encontrasse em apuro suficiente, os meus pés perderam o chão e afundaram-se em geladas águas de um riacho. Chocado, cheguei à outra margem em dois passos. Nunca houve um momento, antes e depois, em que senti-me mais estúpido, deveras, do que aquele. Sozinho no escuro, de pés molhados. Imbecil.
Finalmente, encontrei um trilho que separava as árvores. Senti um alívio quando pude contemplar o firmamento com um largo movimento do pescoço. Foi nesse trilho que houve um frente-a-frente entre mim e uma criatura. Um ruído no escuro interrompeu-me a marcha. Pus-me estático, escutando os sons de passadas que estavam, certamente, cada vez mais perto de mim. Por instinto, dei um passo ao lado, e fui-me de encontro a uma árvore. Permaneci quieto de nariz colado ao tronco. Quando a senti a poucos passos de mim, dei uma mirada por cima do ombro, como se pretendesse encarar a morte. Um par de orbes luminosos deslizavam-se, fitando-me. Abracei com força a árvore. A criatura correu ao longo do trilho, por trás de mim, ignorando-me, e antes que desaparecesse num outro lado, o seu movimento permitiu-me discernir no escuro a figura de um bípede, como se fosse uma pessoa.
No silêncio da noite, como sempre, deixei que dúvidas invadissem a minha mente. Provavelmente, não tinha-me visto, ter-me-ia atacado se tivesse visto, seria certamente uma criatura perigosa, além de estranha. Temendo que encontrasse o casal que eu perseguia, corri para a mesma direcção da criatura. Orientando-me pelas estrelas e, depois, por um súbito aroma a cera e ervas chamuscadas, facilmente percorri o resto do trilho até que, por entre as árvores, um brilho cintilou. Caminhei até uma clareira iluminada, pé ante pé, tendo o cuidado de esconder-me atrás de um tronco de árvore, e dei-me por mim num cruzamento do qual bifurcavam diversos caminhos.
Aos pés duma alta e tosca cruz, feita de troncos delgados, espetada no solo no meio do cruzamento, encontravam-se duas mulheres. De braços cruzados a fechar o casaquinho e de rosto enfaixado, não havia dúvidas de que era a minha paciente. A outra era uma velha. Segurava um bastão retorcido, na ponta do qual pendurava-se uma lanterna de vela. Negros eram os seus trajes, as meias e os sapatos. Pálidos eram o seu rosto, as mãos e os cabelos brancos sobre a testa a romper do lenço negro que os prendia. Ao pescoço, tinha um crucifixo de madeira. Nos seus cintos de couros estavam pendurados uma parafernália de bolsas, alguns odres e uma faca com a ponta curva em forma de foice.
As duas mulheres estavam de olhos fixos num dos caminhos que chegavam ao cruzamento, como se aguardassem por algo. Não muito depois de eu ter chegado ao local, surgiu nesse caminho, esbaforido, um homem de tronco nu a correr. Quando, ao parar junto delas, a luz iluminou-lhe o rosto, reconheci-o como sendo o homem da jovem mulher. Com aquelas barbas e costas tão peludas, parecia-me pouco decente. A velha deu-lhe algo para saciar a sede com um dos seus odres, enquanto a jovem, de mão no ombro do homem, murmurava algumas palavras. Prontamente, o homem escolheu um caminho diferente do qual veio e continuou a sua corrida, sob o incentivo de aplausos da jovem que, de seguida, cruzou os braços num dos da velha, ao qual gesto a velha devolveu um sorriso. Não estou certo de quantos caminhos cruzavam-se naquele ponto. Acho que eram seis caminhos. Ou seriam sete?
A minha curiosidade aumentava aos poucos e teria preferido permanecer escondido atrás da árvore e assistir ao desfecho daquele acontecimento bizarro. Alguma coisa impeliu-me a revelar a minha presença perante elas. Não recordo-me se foi por causa do frio da noite, dos pés molhados e daquela luz tão convidativa da vela, ou se foi a minha súbita solidão, uma sensação de vazio na escuridão que precisava de ser aplacada pela companhia. Tinha ficado escondido o que pareceu-me um largo tempo e elas próprias trocavam olhares de impaciência. Fui ter a elas e, ao sair da treva para a luz, quando dei-lhes uma boa noite, ambas deram um salto, tal o susto. Pretendi tranquilizá-las, apresentar-me, era médico na clínica, mas a velha chegou-se a mim, quase batendo-me com a lanterna na ponta do bordão, gesticulando para que eu fosse embora, dizendo, entredentes, que eu não devia estar ali, estava a estragar tudo. As palavras pouco eram mais que sussurros mas ela fazia valer a ameaça pela intensidade do olhar e pela expressividade dos gestos. Enquanto a jovem, por sinal, permanecia quieta e calada. Os seus olhos escuros, espreitando através de uma fenda entre as ligaduras, estavam fixos num ponto atrás de mim. Parecia um olhar cansado, desiludido.
Foi quando ouvi atrás de mim um som gutural que deixou-me petrificado. Um pesado e retumbante resfolegar de um animal. A velha, muito quieta, prendeu o olhar na mesma direcção, enquanto agarrava o crucifixo de madeira. A cada fôlego a ressoar-me nos ouvidos, mais o instinto obrigava-me a protelar a fuga. Em poucos passos, esgueirei-me, lentamente, por entre as duas, e atrevi-me então a olhar para trás. Um par de olhos irradiantes observavam-nos. Senti-me capturado sob o poder daquele olhar, como se vazasse-me a alma do corpo. Pensei que fosse morte certa logo que tinha percebido, pelos traços da figura, a certa distância da luz, que não teríamos nenhuma forma de salvar-nos. Não tinha o aspecto do homem da jovem, nem do ser estranho que eu vira num outro caminho, ainda que aquele brilho dos olhos fosse tão familiar. Era muito maior. Coberto de pelagens, grande desenvoltura, caminhando sobre os quatro membros. O rosto estava esticado num focinho monstruoso. Um par de presas arrebitavam da mandíbula. Deu um urro, um horrível som de que nunca vou esquecer-me, que deixou-me atarantado. Foi um ataque muito rápido. Antes de, num ápice, o animal ter saltado sobre nós, a jovem empurrou a velha para o lado e eu tropecei nos meus movimentos. Sem ter hipóteses de levantar-me do chão, não pude fazer mais do que levantar um braço à frente da minha cabeça, assim que vira-o junto a mim, de mandíbulas escancaradas. Abocanhou a manga da minha bata, contorcendo o meu braço. Sacudiu-me no chão, tal era a força do seu pescoço. Foi com um baque da lanterna no focinho da besta que a velha salvou a minha vida.
Quase podia ter custado a sua própria vida. Assisti, com consternado horror, a criatura derrubar a velha. Se não fosse a paralisação a controlar o meu corpo, podia ter pegado na lanterna caída ao chão e espancar com ela o focinho do animal, tal como ela fizera, não sei. Nada fiz. Se dependesse de mim, a velha teria sido morta nessa noite mas, felizmente, a jovem mulher, que não a vira mais do que uma figura delicada de vestido, enfrentou a besta. Surgindo por trás do animal, ela prostrou-se junto às patas dianteiras, prendeu os braços franzinos ao redor do pescoço largo enquanto, num gesto gentil, repousava o rosto enfaixado junto à orelha , como se buscasse docilidade. Agarrava um objecto, cujo brilho cintilou, e quando ergueu a mão bem alto reparei que era a faca com a ponta curva em forma de foice. Um rápido movimento da mão. Um urro miserável da besta. Em menos de nada, a besta saltou para o lado e mergulhou nas trevas com a jovem agarrada ao dorso. A velha, estirada no solo, ficou imóvel. É com profunda vergonha que recordo a inutilidade que fui o tempo todo. Apenas saí do torpor, no qual estava, com o gesto da velha, que ergueu a mão e pegou no cajado ao seu lado. Ficou ferida num ombro do qual pendia um farrapo de tecido negro. Inacreditavelmente, eu não fiquei com qualquer ferimento.
Envergonhado por não ter socorrido a velha, aproximei-me dela sem ter dito qualquer palavra, nem pedido qualquer desculpa. Suportei o peso dela e avançámos juntos em passos trôpegos pela escuridão, afastando os ramos à nossa frente que, um a um, eram revelados pela lanterna que ela erguia, bem alto, sem sinal de fraqueza. Pareceram incontáveis as vezes que vi as mesmas árvores, os mesmo arbustos. Por fim, descobrimos no chão, reflectindo o brilho da lanterna, um rasto de sangue fresco. Quase desatava, nesse momento, a correr para perscrutar o resto do rasto que levou-nos, mais adiante, até junto da jovem que escondia no chão a cabeça entre as mãos e, junto a ela, qual mistério horrendo, estava o corpo, não da besta, mas de um homem nu. Espetada no peito, do qual jorrara sangue sem fim, ficou a faca. A velha pousou a lanterna no chão, junto ao rosto do homem. Acerquei-me do corpo e constatei-me de que era inútil uma manobra de reanimação cardio-pulmonar. Estava morto.
Lancei um olhar às duas carregado de questões sobre tudo o que acabara de acontecer. A velha retorquiu, de forma confusa como se não quisesse revelar todo o mistério, que o homem era um corredor, que tinha de correr o fado no bosque, quando não controlasse os seus impulsos animalescos, e que pretendiam quebrar a sua maldição com recurso a uma qualquer arte negra.
Recordo-me bem das palavras da jovem. Lágrimas humedeciam o tecido das ligaduras do rosto quando disse:
— Ele tinha um amor profundo por mim. Um amor tão verdadeiro quanto raro. Com tal paixão, o seu coração batia forte por mim e derrubava a sua razão. Libertava, do seu íntimo, que todos temos, um animal. Era apenas a besta que queríamos aniquilar!
Não era possível, disse eu, não podiam fazer mal à besta sem magoar o homem. A besta era o homem.
Disse-lhe que eu havia de ir à polícia, que tinha de explicar o sucedido, que lamentava mas tinha que ser, mataram o homem. Mantive-me impávido na minha resolução face às súplicas da jovem. Foi quando a velha intrometeu-se, puxando um odre do seu cinto e oferecendo uma bebida para tranquilizar-nos e recobrar as forças. Da primeira vez, recusei o convite. A velha convenceu a jovem com um largo olhar. Verteu o líquido para a tampa do odre, como se fosse um copo, e estendeu-o à jovem. Com os dedos ainda trémulos, a jovem puxou o tecido das ligaduras do rosto e alargou a abertura junto aos lábios, aos quais levou o copo e sorveu lentamente o conteúdo. A velha repetiu os gestos, enchendo para ela mesmo o copo que a jovem devolveu. Passado algum tempo, vendo as duas algo mais relaxadas, de olhos postos nos chão, quietas, aceitei então que a velha servisse-me um copo. Engoli-o de um trago.
Acordei, era já de manhã, numa cadeira na sala de espera da clínica. Ao meu redor, parecendo ignorar a minha situação, estavam alguns pacientes nas cadeiras e uns colegas em trânsito nos corredores, e numa esquina, de olhos fixos em mim, às risadinhas, as duas enfermeiras que confrontara na véspera. Nunca soube recordar-me de como ali fui parar, nem o que mais acontecera nessa noite entre a floresta e a clínica. O maior mistério, contudo, é o que aconteceu com as três pessoas que estavam na floresta. Contei a história às enfermeiras e aos meus colegas. Troçaram de mim. Elas disseram que apenas ferrara os olhos na sala de espera toda a noite. Comuniquei os acontecimentos às autoridades que recolheram os testemunhos do pessoal médico e procederam às buscas na floresta mas nada concluíram nem encontraram o corpo do homem. Quanto à mulher, de quem podiam investigar o paradeiro apenas se fosse um familiar a reportar o desaparecimento, foi-lhes suficiente encerrar o caso após tomarem nota da alta médica que eu assinara.
Regressei, não muito depois, à cidade do Porto, lar do progresso, do comércio e de tertúlias racionais nos cafés, e o meu lar. Tornei-me professor nas novas instalações do Instituto Abel Salazar.
Às vezes penso nela. Imagino que tenha ganhado uma nova vida. Novos trabalhos, com novo nome. Espero que tenha ido para terras com outras mentalidades, que seja finalmente livre para ser ela própria. Que esteja livre da besta do homem.
Interrogo-me, pelo contrário, se está num permanente estado de melancolia, a juntar os pedaços do seu coração, nunca inteira.
Após tantos anos depois, continuo a ir àquela terra, de vez em quando. Em todas as vezes não localizo a encruzilhada com o cruzeiro de madeira. Percorro a floresta situada no vale de lés a lés, nunca encontro nada que seja familiar. Uma vez localizei o ribeiro onde encharquei os sapatos mas nas vezes seguintes não estava lá, como se aparecesse e desaparecesse por artes mágicas. Não encontro quaisquer pistas do que acontecera naquela noite.
Depois de tanto tempo vim a ganhar uma forte suspeita, pelo menos, da razão do comportamento da gente da terra. Provavelmente, conheciam a mulher desaparecida, ela fazia parte deles, e com ela juntaram-se num segredo implícito. Fui sempre encarado como um forasteiro, um intruso nos seus costumes, e faz parte dum plano levarem-me a crer de que o que acontecera não era mais do que a minha imaginação. Houve um tempo, pouco tempo depois do sucedido, que fiquei a duvidar da minha mente mas, com prudência e racionalidade, mais estou seguro do que aconteceu. Por isso, sempre que conto esta história, prefiro que seja escutada por gente citadina, gente mais culta, estou certo.
Narro os acontecimentos sobretudo aos meus colegas doutores, aos meus mais fiéis alunos. Narro, no fundo, a quem dota-se de um certo intelecto mas também de uma certa abertura de espírito, de curiosidade, aceitando que existem coisas que desconhecemos e situam-se fora da nossa razão. Se escutar atentamente as minhas palavras, sabendo do meu carácter idóneo, verá que não há contraditório nem nada inconcebível no meu testemunho. Por conseguinte, concluirá tratar-se de uma história verdadeira. E se provas forem precisas, guardo no fundo do armário do meu quarto, dentro duma caixa de cartão, a bata de médico que usei naquela noite, com largas rasgadelas numa das mangas.

.

“O amor não surge como uma doença, mas transforma-se numa, quando se torna obsessivo. O teólogo muçulmano Ibn Hazm afirma que uma pessoa cega pelo amor não quer ser curada e os seus sonhos causam respiração irregular e aceleram a pulsação. Ele identifica a melancolia amorosa com a licantropia, uma doença que leva a vítimas a se parecerem com um lobo. A aparência exterior começa a mudar. Não tarda, a vista começa a falhar, os lábios mirram, o rosto fica coberto por pústulas e crostas. Surgirão marcas parecidas a mordeduras de cão na cara, e o amante acabará os seus dias vagueando pelos cemitérios à noite como um lobo.”

Texto retirado de um livro proibido entre tantos descritos n’ “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco.

Publicado em Conto, Terror | Etiquetas , , , | Publicar um comentário

Verão

Alguns haiku de Verão

Mar, um café e
uma clarinha de Fão,
simples férias
🐚
Águas revoltas
desfazem em espuma,
sulcos sob os pés
🐚
Testa n’ areia,
aqui um buraquinho
para o nariz
🐚
Boiando no mar,
embalado como um
bote sem leme
🐚
Costas vergadas,
mão cheia de beijinhos
entre as pedrinhas

Publicado em Conto | Publicar um comentário

It’s Alive 2020

Participação oficiosa no evento It’s Alive 2020, organizada pela Imaginauta.

Um grito na noite. Ninguém a acudiu. O corpo da mulher foi encontrado sem os olhos.
És a minha obra-prima, diz o cirurgião plástico, enquanto remove as ligaduras do rosto do homem, esses olhos são um achado! Falta o último detalhe mas estás com sorte, o Festival Erótico é para a semana.
Publicado em Mini-Conto, Terror | Publicar um comentário

Narratiwitos #2

@@@

A multidão alegre saúda a vinda dos camiões. A cidade tem sido ameaçada com a subida do mar e exigiu que o orçamento fosse gasto numa solução.
Cresce-lhes um temor ao reparar no reduzido número de camiões.
– Elegemos um palhaço.
Os camiões estão carregados de baldes e esfregonas.

@@@

Um rei avarento fundara um castelo. Pagou pouco pois obtivera uma harpa mágica. Pediu ao bardo que cantasse um futuro do castelo salvo de invasões e intempéries.
Das cordas saiu nem um som.
Meu rei, é baratucha.
Foi, recordava o rei no castelo derruído sob chuva, todavia saiu cara.

@@@

Sente-se a antecipação do jogo de futebol. As ruas apinham-se das cores, de risadas e da cerveja na mão.
Ouviu uma voz e olhou para trás.
-Desculpa?
-Eu disse se queres levar?
-Levar? Como assim?
-Levar porrada, aqui na estrada.
-Ah, acabei de lanchar, deixa estar, obrigado.

@@@

Dobrou o mapa de tesouros e desenterrou o baú. Continha uma Pena de Fénix. Valia tanto como um Rubi ou três Poções. Abriu o seu inventário, retirou três Poções e depositou-as no baú, para o próximo viajante, que poderia precisar. Havia monstros nas redondezas.

@@@

Todos conhecem os Caçadores. Vão às vilas quando corre a nova dum dragão a sobrevoar. São tão exímios que durante a caçada dispõem-se a beber e a cear.
Viemos das Colinas, disse um.
De tão longe, inquiria a rapariga, e não destes uns passos e deixar no cesto vossos odres vazios?

@@@

Eram livros o seu refúgio. Afastara-se de pessoas e perdera amigos.
Esteve mudo muito tempo.
Sonhou um livro seu mas o que escrevia nunca o satisfez.
Reparou que deixara de saber conversar. Escrever é conversar com o papel e conversar com pessoas é escrever nos seus corações.

@@@

No fim do mundo, encontrou o Sábio. Perguntou-lhe como tornar o mundo melhor.
Não corra o mundo em busca duma ideia, disse o Sábio, faça uma acção pela comunidade. O mundo é grande, não vai adiantar apanhar um comboio ou ir de barco à vela. As ideias é que têm de correr o mundo.

@@@

Vieram a saber que fora gasto dinheiro numa feia obra d’arte. Nem o artista era da terra nem a obra citava sua história. Pra história ficou a “Revolta da Esfregona” quando enfiaram as esfregonas na obra. Na vez que houvesse igual feito, seria noutro sítio onde enfiar a esfregona.

@@@

Publicado em Mini-Conto | Publicar um comentário