O quarto escarlate

Aviso à navegação: a seguinte ficção contém elementos gráficos sensíveis, tais como abuso corporal e profanação de cadáver.

De início não o reconheceu. Nem tinha reparado que dormia até então numa almofada de cetim. Tão habituada estava em dormir numa cama com lençóis e almofada de linho, de padrões floridos, que tardava em reagir. Nunca tinha dormido noutra cama. Foi a luz que ela primeiro estranhou. Era vermelha e fria. Haveria de dizer que não tivesse fim, não fossem as sombras do que havia ao seu redor. Piscou os olhos. Abria-os a muito custo. Sombras repousavam no outro lado da cama. Os olhos dela focavam e adivinhavam as sombras, os contornos e os tons. E deu por si, pela primeira vez na sua vida, a acordar na companhia de um homem.
Estava deitado de barriga para cima. Mantinha os olhos fechados e estava nu. A cama não tinha lençóis ou cobertores que cobrissem aos dois e ela pôde ver as partes íntimas dele. Fechou os olhos e enfiou a cabeça na almofada. Foi horrível de ver. Umas deformidades, foi o que lhe pareceu ser. E tanta, tanta penugem negra a cobrir as pernas, a barriga, tudo. Não podia ser, duvidava do que tivesse visto. Os homens não podiam ser assim feios. Lentamente espreitou por um olho. Ele estava na mesma cama que ela, repousava imperturbável. Foi apenas ao observar com atenção o seu rosto que, num instante de terror, apercebeu-se de que não dormia. Estava morto.
Ela virou-se para outro lado, tentou deslizar para a borda da cama mas um puxão obrigou-a a permanecer com ele. A sua mão estava agarrada à dele. Pesada e emperrada era a dele. Não estava fácil apartar os seus daqueles dedos duros e nodosos. Deu safanões, puxou, aos poucos a sua mão escorregava do aperto. Ficou ofegante pelo esforço. Apesar da falta de sensibilidade, que notava ter afectado os seus membros, conseguiu com a mão livre abrir, um a um, os dedos do morto. Quando, por fim, libertou a mão, recuou rapidamente e perdeu o equilíbrio ao levantar-se da cama, derrubou a mesinha-de-cabeceira e fez cair um abajur na cabeça.
Ouvia o coração bater com tanta força que parecia que o tinha a palpitar entre as orelhas. A respiração pesava-lhe. Juntou as mãos ao colo e concentrou-se em recuperar o fôlego e a calma. Levantou-se, apoiando-se na parede, assim que sentiu estar um pouco reestabelecida. A luz vermelha alterava a perceção do que via. Aproximou-se da cama, encarou o corpo nu. Ela estava vestida, embora demorasse a reconhecer as roupas como suas. Eram o seu conjunto favorito. Não eram encarnadas, não, as calças eram de ganga azul-marinho, tal como o pequeno casaco de flanela, e uma camisa branca. Mirou acima do ombro e contemplou os cantos e as paredes, despojadas dos seus estimados livros, cobertas de um padrão de corações. Aquele não era o seu quarto. Uma porta com um desenho pregado. Outra porta, aberta para um casa-de-banho mais pequeno do que o seu. Alguns quadros, uma janela, persianas fechadas e uma fina cortina vermelha.
Pensava tratar-se de um sonho. Esteve numa cama com alguém que nunca na vida vira e tão junto a si como não antes algum homem se tenha aproximado dela. Foi sempre seu desejo partilhar a cama com alguém, só podia estar a viver uma fantasia, embora sinistra e cruel. Sentia-se tonta, de cabeça leve. Também o rosto padecia da insensibilidade que atingira as mãos. Era tão estranha a sensação dos lábios e da ponta do nariz ao tactear pela face.
Enquanto escrutinava o corpo do morto, notou na falha de pelugem no meio do peito, como se fora aparado a lâmina. A pele estava exposta e tinha um tom particularmente mais escuro. Destacava-se uma cicatriz larga que mais parecia uma fenda profunda. Instintivamente, desviou o olhar para a sua camisa. Alargou a gola. Uma ligadura apertava o seu próprio peito. A passo cambaleante, caminhou à casa-de-banho, ligou o interruptor e colocou-se perante o espelho. A luz branca repiscou antes de iluminar a divisão. Ela limpou a superfície gordurosa do espelho com a palma da mão. Despiu e colocou o casaco sobre o tampo da sanita ao lado. Desapertou os quatros botões da camisa e mirou o reflexo no espelho.
Várias voltas de ligadura apertavam-lhe as costelas. Puxou com jeito uma das voltas para baixo, depois uma segunda, o suficiente só para espreitar um tecido de plástico colado ao peito. Era algo fofo, preso por uma espécie de fita-cola. Experimentou descolar um pedaço da fita. Teve um vislumbre do tom arroxeado da sua pele e de um fio preto. Voltou a colar a fita e puxou as voltas da ligadura com cuidado ao sítio. Aquilo era assustador e demasiado real. Os joelhos começaram a tremer com violência e sabia que estava a ponto de cair nas lajes do chão se não fosse amparar-se ao lavatório. Girou a torneira perra. Houve um ronco na parede e saiu um delgado fio de água da torneira. A água fugia por entre os dedos das trémulas mãos, e colocou os cotovelos e a cabeça no lavatório, enquanto tentava manter o equilíbrio, para conseguir salpicar de água o seu rosto. A camisa colava-se-lhe aos cotovelos, ensopada.
Esperava que lhe passassem os tremores e concentrou-se em estudar o rosto reflectido no espelho. Sem ferimentos visíveis, embora houvesse uma palidez que parecia-lhe doente. Os olhos estavam baços, encovados. Os lábios sem cor, os cabelos da franja colados aos suores da testa e das maçãs. Era a imagem de um espectro, aquela luz e sua magreza evidenciavam os sulcos dos sobrolhos e maçãs. Nunca se achara atraente. Nem procurara vestir-se de forma mais feminina. Encontrara pessoas ocasionais na sua vida mas ninguém em particular a quem chamar de amigo. Nunca fizera inimizades nem causara danos a ninguém. Uma questão ancorou-se na sua mente: porque tocaram no seu corpo?
Fechou a torneira. Logo que sentiu-se capaz de caminhar sem problema, regressou ao quarto. Não mais incomodava-a a opressiva profusão de vermelho irradiada pela luz. Demorasse o que fosse preciso, tentava recordar de como fora ali parar. Esforçou-se a vasculhar na sua memória, a reconstituir os últimos passos que dera. Não teve nem a vaga ideia de entrar nesse quarto. A imagem mais fresca era a de ela concentrada no trabalho mas como a sua vida não passava além de trabalho e casa não sabia dizer nesse momento se estivera horas ou dias na cama. O seu corpo e o do homem estiveram sujeitos, sem contestação, a qualquer tipo de maldades. Acercou-se da cama e deu uma longa mirada ao corpo nu, que parecia, não atirado para a colcha, mas como se ele, à mercê do sono, tivesse deitado nela e adormecido. Tal como acontece com os sonos tranquilos, os lençóis afiguravam-se alisados, as almofadas, arranjadas. O aspecto era limpo, sem máculas. O peito do cadáver causou-lhe a mesma impressão. Na área ao centro do peito, despojada de pêlos, vislumbrava-se um subtil corte na pele, aparte o tom escurecido. Ela deu por si a admirar a rectidão daquela fenda. Não saberia dizer por que razão estava tão calma e o porquê do seu gesto mas espetou os dedos na ferida do peito do cadáver. Havia recuperado alguma sensibilidade, sentia assim um resquício de tepidez na pele. Penetrou os dedos e com ambas as mãos alargou a fenda. Sabia que havia de apalpar algum músculo ou osso mas apenas sentiu algo duro já os dedos estavam mergulhados quase na totalidade, e retirou as mãos. Descobriu que estavam manchadas. As nódoas desfaziam-se como pó seco ao esfregar os dedos.
Observou o rosto do homem. Tinha uma barba grossa e o penteado que era a tendência do momento. Era corpulento a mais para o seu gosto. Uma testa atrevida e um nariz curvo. Papos sobre as maçãs do rosto. Não o achava muito atraente, embora pudesse achar que era um rosto pacífico. Resolveu estudar o físico do homem. Girou os pulsos, levantou os braços, afastou as pernas e alisou os pêlos mais cerrados à procura de tatuagens ou sinais físicos que pudessem identificar o homem. Não achando nada, não teve de momento outra conclusão além de, também ele, ser uma vítima como ela, não havendo aparente ligação nem com ela nem com quem tivesse engendrado tudo aquilo.
Resolveu também estudar o quarto. Atrás de si havia uma janela. Afastou a cortina, abriu as persianas, apenas para permitir umas frinchas de luz, e espreitou para fora repiscando os olhos sem cessar. O sol brilhava intensamente. A rua era larga, ladeada por edifícios baixos, de fachadas gastas de tijolos e rabiscadas de grafitti. Não havia tráfego. Não via vivalma. Ninguém atrás de um poste, de uma árvore ou dentro de um carro. Nem murmúrios, nem sombras. Voltou o olhar à semi-escuridão escarlate. O quarto era pequeno, o mobiliário reduzido. A cama, uma mesinha-de-cabeceira, um armário. Chão alcatifado e no tecto pendia um globo vermelho. Havia humidade e bolor nos cantos. O papel de parede, com listas verticais de coraçõezinhos, era de péssimo gosto, assim como a alcatifa desbotada. Os quadros junto à porta do quarto apresentavam jovens desnudas com véus de seda. A casa-de-banho era simples, lajes sujas no chão e paredes, sem quaisquer dizeres rabiscados. Espelho, lavatório, uma sanita e uma banheira, levantada do chão por quatro patas. Não havia sinais de ter sido usada recentemente. Como em tudo na casa de banho, nódoas cobriam a sua superfície. Antes de sair, pegou no casaco que deixara no tampo da sanita, vestiu-o e fechou os botões da camisa. Abriu o armário do quarto. Num dos lados as gavetas estavam vazias, no outro os cabides vazios, excepto um, no qual roupa escura estava pendurada: casaco, calças, camisa. No chão do armário, um par de sapatos e, atirado para um canto, um soutien. Ao pegá-lo, reconheceu-o como sendo seu. Um brilho de fulgor surgiu-lhe nos olhos. Guardou o soutien no bolso do casaco e atirou a roupa do armário para a alcatifa. Tirando os apelidos italianos nas etiquetas, não havia nada nas roupas que pudesse caracterizar o homem. Nem carteira havia, muito menos documentos de identificação. A sua própria carteira, como veio a descobrir, ainda estava guardada no bolso interior do casaco, com todo o dinheiro que lembrava de ter e na posse de todos os documentos. Isso seria outra diferença entre ela e o homem: ambos foram colocados naquele quarto, mas a ela não só foi-lhe dada a hipótese de continuar a viver, como pôde também retomar a vida como a conhecia.
Uns sulcos na alcatifa, serpenteando curvas junto à porta do quarto, davam a sensação que algo pesado fora ali arrastado. Na porta estava afixado um desenho, uma planta de um andar com vários quartos cortados por um corredor, onde estava desenhada uma seta que ligava o quarto às escadas. A letras miudinhas no rodapé estava a indicação de ser um hotel mas não reconheceu o seu nome. Tacteou a maçaneta da porta. Evitaria girá-la se provocasse nem um chio, mas acabou por girar sem ruído. Não estava fechado à chave, nem com um trinco. Entreabriu a porta. O corredor era tranquilo, cores amenas e portas brancas, luzes de pouca claridade. Não pressentindo a presença de alguém, avançou um passo. O corredor estava vazio e, ao fundo, perto de uma janela, estavam as escadas. Regressou ao quarto e fechou a porta. Contava que houvesse no quarto as respostas que procurava obter e talvez ficaria ali algum tempo antes de abandonar o hotel.
Na parede os quadros, a perder a cor, mostravam bem a classe do hotel. Mulheres em pose, sedutoras, sugestionavam a sua beleza nua atrás de véus transparentes. Noutro quadro, com um estilo mais arcaico e medieval, uma cena idílica de nus pelo campo, com árvores e anjos. Faltava ver a última peça de mobiliário, a mesa-de-cabeceira de onde derrubara o abajur. Tinha um telefone antiquado, e o estranho era que havia uma placa de metal que não permitia aceder ao teclado, exceptuando um único botão, com um “R” desenhado na que fora uma superfície rasurada. Havia uma única gaveta, que continha um livro com as palavras “A Bíblia Sagrada” na capa e ao lado uma caixa de preservativos genérica, com dois preservativos por usar. Ao folhear o livro, não encontrou folhas soltas, papeizinhos ou rabiscos entre as páginas. Arrumou o livro e fechou a gaveta. Um leve suspiro fugiu-lhe dos lábios, desânimo pela busca infrutífera. Levantou o auscultador do telefone, o som contínuo provava que estava operacional. Premiu várias vezes no gatilho do descanso mas, diferentemente do que esperava, o som passou a ser intermitente. Pousou o auscultador, nada podia fazer. Tinha o botão com o “R” ao seu dispor. Ainda pairou o dedo sobre o botão, indecisa se seria uma boa opção. Um breve assomo de coragem e levantou de novo o auscultador e premiu o botão.
Atendeu uma voz horripilante.
– Olá, em que posso ajudar?
Ela nada disse.
– Sim? Há algum problema co’ o quarto? Estão aí há bastante tempo… Aposto que ela tem sido toda boa, não ‘tou certo?
Ela desligou. Recuou uns passos. Provavelmente ele viria a desconfiar, vir ter ao quarto, se estivesse no mesmo prédio. Ou provavelmente não, em todo o caso ela não pretendia ficar, decidida em correr para as escadas e depois para a saída. Deu uma mirada rápida ao quarto ao abrir a porta. Receava que não viesse a obter respostas do que ali aconteceu de facto. Viria a chamar a polícia, sim, mas não era garantia de que as obteria em pouco tempo. Quem quer que fizera o que aconteceu no quarto, fizera um serviço limpo. Não havia descuidos nem deslizes nem nada foi deixado para trás. Ou deixou algo?
Encerrou a porta e deitou um relance ao quadro com a cena idílica. Se havia algo que ali destoasse, seria o quadro. Contava uma história. Nada havia atrás do quadro ao desviá-lo. Na pintura não havia apenas pessoas desnudas a correr pelo campo e querubins a rir. As pessoas, assustadas, estavam em fuga e seriam os anjos que perseguiam-nas. Um pormenor estava em sintonia com o que aconteceu com ela e o homem na cama: um casal, em sofrimento, tinham os corações a gotejar sangue, trespassados por setas disparadas pelo anjo com o arco na mão. Era a resposta que tanto procurava. O que aconteceu no quarto era a mesma imagem do quadro. Todos conhecem o anjo de arco na mão. A história do anjo Cupido é sobre a união dos corações de duas pessoas, ainda que recorra a uma metáfora para representar essa união através da seta de um anjo espetada no coração. Uma imagem sempre considerada como muito romântica. Não podendo escapar aos desígnios do destino, as pessoas saberiam assim que foram abençoados por um amor verdadeiro. Não fabricado pelo engano do homem, mas uma dádiva divina. Naquele quarto escarlate, ela recebeu uma dádiva. Atrás das ligaduras, encerrado por um fio preto, tinha no seu peito um novo coração, concluiu ela, e teria sido o coração do homem na cama. Ficou convencida: os dois foram descobertos por alguém que vivia aquela história e acreditava ser um S. Valentim dos tempos modernos.
Retornou à janela e voltou a espreitar a rua através das persianas. Não viu ninguém. Se o tivesse visto, se estivesse ele atrás de um poste de iluminação, aguardando por ela, de sorriso aberto, ela haveria de ir ter com ele, haveria de descer as escadas, de lágrimas nos olhos, atravessar a rua a correr nos seus sapatos de salto e, chegando defronte dele, arrancar-lhe-ia o sorriso com uma bela bofetada. “Sacana!”.
Muitos mais impropérios desfilaram; usou-os todos mas em silêncio. Teve sempre uma vida regrada. Ao longo dos anos, de uma forma ou doutra, sem ter a quem desabafar, foi moldando um jeito de controlar as emoções. De punhos fechados a suportar o seu semblante cerrado, estava a lidar com uma situação insuportável, mas só tinha a si própria, como sempre, a quem manifestar a repulsa e revolta pelos comportamentos de um fulano nojento que ousou brincar com o seu corpo. Apenas uma mente doentia imagina que faça-o pela felicidade ou bondade de outrem. Distorce o significado da figura de S. Valentim. Quantas vezes fora o Amor distorcido só para servir os interesses dos homens? Não se pode forçar o amor romântico entre as pessoas. Não há casamenteiros nem algoritmos que façam-no acontecer. É no momento de maior vulnerabilidade perante o outro que alguém aceita unir as suas vidas. É a escolha mais pessoal e deve vir apenas de dentro de si. Uma vez estabelecida uma intimidade entre duas pessoas torna-se natural, nas suas confidências, sem medo de serem julgadas, efabular os sentimentos uma pela outra, recorrer a imagens poéticas, valorizar a relação. Dizem que devotam o coração ao outro. É o maior sacrifício; se a oferta do coração, enquanto símbolo do amor, não for aceite, a sua vida é terminada. Não passa de mais uma imagem poética dita por amantes, embora não deixe de ser verdadeira. A vida é preenchida por um elemento: ou Amor ou Morte. Em inúmeros aspectos, um elemento é a ausência do outro.
As manifestações públicas de confidências, carinhos e tudo o que era do foro privado ganharam expressão com o amor cortês que surgiu entre a nobreza das cortes europeias no século XII. Ainda hoje define o romantismo praticado na cultura ocidental. Foi introduzido o valor da corte: a donzela, adorada, endeusada, distante, é cortejada pelo cavaleiro que passa por várias superações, deveras humilhações, a fim de provar o seu mérito. Trouxe para as ruas e praças, para os olhares de terceiros, o que antes era escondido e preservado. O amor eterno era declarado e declamado, nem importava que fosse entre desconhecidos: era preciso fazer a corte antes de mais.
Tirando as diferenças nos rituais e experiências, a corte pouco mudou até os dias de hoje. Há maior pressão sobre a mulher, exercida pela sociedade e facilitada pelas novas tecnologias. “Não” significa “sim”. Quanta literatura, cinema e outras artes, pela televisão ou pelo smartphone, acessíveis a todos, promove o amor cortês e recompensa a persistência do homem, após as sucessivas seduções, com a anuência da mulher na última cena da história? Há histórias terríveis sobre perseguições. Ela conhecia-as bem. Muitas delas terminam da pior maneira.
Acercou-se da cama e abeirou-se sobre a outra vítima, tal como ela, da angustiante circunstância. Abanando a cabeça, sentiu imensa pena por ele, e deu-lhe um beijo na testa. Após ter encarado a ferida aberta ao meio do torso do homem, fitou novamente o rosto dele. Nariz curvo, profundas olheiras sob sobrancelhas farfalhudas. Apesar do penteado permanecer alinhado, a barba cerrada acusa falta de cuidado. Corpulento, ombros e braços carnudos que podiam ter oferecido tantos abraços. Tão suaves as mãos que deviam nunca terem tido trabalho árduo. A mão que antes agarrara a dela e da qual ela tivera imensa dificuldade em soltar-se, tanto era o aperto. Como se não tivesse sido o assassínio a juntar as mãos. Como se tivesse sido o morto a agarrar e apertar entre os dedos a mão dela. Então atingiu na mente dela a verdadeira natureza do que acontecera nesse quarto. Por breve momento, ficou incrédula com o tamanho atrevimento, tamanha arrogância do homem. Deu-lhe um sopapo no rosto. Gritou. Martelou os punhos esbaforidos no rosto e no torso dele. Assim que sentiu brotar lágrimas, saiu defronte dele, afastou-se da cama e cambaleou até ao canto perto da casa-de-banho e encolheu-se na alcatifa refugiando-se entre os braços. Longas lágrimas escorriam-lhe pela cara contorcida num esgar incontrolável enquanto era dominada por pensamentos horríveis. Violada, corpo e alma.
Decorreu um tempo; não tinha nem podia calcular ideia de quanto, até abrir a porta do quarto, de olhos secos e nariz fungado. O torso não lhe doera como até então, era imperativo sair do quarto. Caminhou pelo corredor do andar, tanto quanto os joelhos trémulos lhe permitissem, até às escadas no fundo do corredor, sem ignorar os avisos de “não incomodar” pendurados nas portas e nos murmúrios por detrás delas. O último lanço de escadas era iluminado pela luz do dia que enchia um amplo átrio. Reparou no homem com uma camisola cavada suja, atrás do balcão de madeira que fazia esquina com a porta para a rua. Junto dele havia na parede um contador com números e chaves penduradas e à volta autocolantes elusivos ao turismo de uma cidade que nunca visitara. O homem dormitava, cabeça apoiada na palma da mão, com um jornal aberto sobre o balcão. Assim que ele despertou com um ruído e reparou nela, um palito tremeu-lhe no sorriso inesperado que alargava-se.
– Ena, rapariga! Isso é que foi, hã? Foi a puta da noite toda!
A voz horripilante que ela ouvira ao telefone era a desse indivíduo. O palito girava e girava no sorriso; pouco a pouco as suas voltas iam abrandando e o sorriso desvanecendo. O homem estacou-se e fechou o jornal. Aparentava estar confuso e evitava encarar os olhos esborratados da mulher sozinha à sua frente. Estava uma pessoa diferente daquela que ele vira a dar entrada no hotel. O olhar não estava mais amansado por drogas. Dava mostras de raiva. Rosto suado e corado, salpicado de gotas de sangue. Ele mirava por cima do ombro dela como se expectasse que mais alguém na esquina viesse a descer as escadas.
No balcão havia um telefone. Ela inspirou devagar, procurando a calma.
– Pretendo fazer um telefonema.
– Não pode usar – disse ele.
Ela acercou-se do balcão, punhos manchados na madeira, olhos a fitar o homem acima, e espetou o queixo.
– Por que razão não posso?
O homem mirou os degraus da escada, e de novo para a figura. Pegou no jornal. Afastou-se do balcão e foi encostar-se ao armário, cruzar os braços, remexer o palito. Virou a atenção para a tira cómica na última página do jornal.
Ela pegou no telefone, decidida a fazer o telefonema. Sentiu a superfície pegajosa ao encostar o auscultador ao ouvido. Não premiu as teclas. Estacou-se, distraída com um som persistente e em cadência. Empurrou o auscultador contra a orelha, julgando escutar do interior da peça o som inconfundível de um batimento cardíaco. Compreendeu que era, do seu próprio peito, a palpitar, o coração do homem. Quando estivesse deprimida, mergulhada no silêncio, senti-lo-ia. Quando estivesse nervosa, desgastada de stress, senti-lo-ia. Quando estivesse triste ou encontrasse motivos para ser feliz, para ser forte, senti-lo-ia.
Sentiria sempre bater no seu peito o coração do homem.

Sobre ruialex

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